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71ª Assembleia Geral das Nações Unidas Beto Barata/PR
71ª Assembleia Geral das Nações Unidas Beto Barata/PR | Foto:

Igor Sabino é Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e alumnus do Philos Project Leadership Institute. Realizou trabalhos humanitários em ONGs de Direitos Humanos ligadas à American University of Cairo, no Egito, e pesquisas de campo na Polônia, Israel, Territórios Palestinos, Líbano e Jordânia relacionadas a migrações forçadas e perseguição religiosa. Tem como áreas de interesse: Religião e Relações Internacionais; Migrações Forçadas; Política Externa dos EUA para o Oriente Médio; Sionismo Cristão e Islã Político.

(Leia aqui a Parte 1 desta entrevista)

 

5 A diplomacia brasileira sempre teve boa fama: de um pragmatismo propenso à neutralidade e de diplomatas extremamente capacitados. É uma tradição que você reconhece e, em caso positivo, vê ameaçada?

De fato, somos conhecidos internacionalmente pela boa capacitação de nossos diplomatas. O que se deve tanto às exigências do Concurso de Admissão à Carreira Diplomática, como do próprio treinamento que os diplomatas recebem no Instituto Rio Branco, após serem admitidos. Além disso, temos uma longa tradição de pragmatismo nos fóruns multilaterais, baseada principalmente nos princípios e diretrizes que regem a nossa política externa, e que tendem a ser manter estáveis, independentemente de quem ocupe a presidência. Apesar disso, porém, na história de nossa política externa é possível notarmos dois paradigmas diplomáticos principais: um de maior aproximação com os EUA e outro de maior diversificação das relações com outros países. De acordo com Letícia Pinheiro, esse “americanismo”, por assim dizer, pode ser dividido entre a aproximação ideológica e a aproximação pragmática. Então, acredito que no governo Bolsonaro, por tudo que já foi demonstrado até agora, podemos esperar um americanismo mais ideológico. O que mais diferencia essa aproximação ideológica atual de outros momentos de nossa política externa, porém, é a orientação do governo Trump, que é mais “anti-globalista”, anti-imigração, nacionalista e pró-Israel, estando, portanto, longe do mainstream até mesmo de outros republicanos que já ocuparam a presidência dos EUA. Logo, ao tentar mimetizar os EUA de Trump, Bolsonaro poderá trazer vários elementos novos de ruptura, como ele mesmo já mencionou. Creio, porém, que esse alinhamento com os EUA deveria ser mais pragmático e considerar tanto o nosso interesse nacional como a nossa posição histórica diante de algumas questões específicas, incluindo o Meio Ambiente.

6 Faz sentido – seja lá qual for – que o Brasil assuma posição tão forte (e, a meu ver, tão precipitada) a propósito da capital de Israel e do comércio exterior com a China, sob a justificativa de alinhamento com a política externa americana?

Desde que o Brasil votou, em novembro de 1947, na Resolução 181 da Assembleia Geral da ONU para a partilha da Palestina, o país tem procurado manter uma postura de equidistância frente ao conflito Israel-Palestina. A posição oficial adotada pela diplomacia brasileira acerca da questão nos últimos cinquenta anos tem sido a da criação de dois Estados: um árabe e outro judeu, conforme as fronteiras delimitadas antes da Guerra dos Seis Dias, em 1967, com Jerusalém sendo administrada internacionalmente. Entretanto, durante vários momentos de nossa diplomacia, pudemos ver uma aproximação maior de apoio à causa palestina, sobretudo durante o governo Geisel (1974-1979), ainda que supostamente motivada pela busca por ganhos com os países árabes. Em 1975, por exemplo, o Brasil foi favorável à Resolução 3379/1975 da Assembleia Geral da ONU, a qual considerava o sionismo uma forma de racismo e de discriminação racial.

Logo, não vejo problemas em Bolsonaro buscar uma maior aproximação com Israel. Pelo contrário, acho até louvável, frente aos grandes ganhos que podemos ter com as trocas tecnológicas, por exemplo, no enfretamento à seca no Nordeste. Entretanto, mudar a embaixada para Jerusalém já é algo mais complicado. Antes de alinhar-se por completo com Trump, o novo presidente eleito brasileiro precisa negociar com os países árabes, assegurando as boas trocas comerciais com o Brasil. Além disso, é imprescindível que o mesmo reconheça a legitimidade do Estado Palestino, já que a solução de dois Estados é a proposta de solução para o conflito defendida até mesmo pelos sucessivos governos israelenses, inclusive o atual, mais à direita. Esse reconhecimento poderia até mesmo ser a justificativa para a mudança da Embaixada para Jerusalém.

Atualmente, em termos administrativos, a Cidade Santa de fato já funciona como capital de Israel. Para muitos, porém, reconhecer isso seria legitimar a ocupação israelense de territórios palestinos, dificultando ainda mais a solução do conflito. Entretanto, poderia também ser percebido como um passo inicial para a ideia de dois Estados coexistindo, no mesmo território. Como anunciou Trump, este ano, mover embaixadas para Jerusalém ocidental não implica negar a um futuro Estado Palestino que a sua capital seja na parte oriental de Jerusalém. O próprio embaixador da Palestina no Brasil já expressou opinião semelhante recentemente.

Com relação à China, o princípio da cautela também é válido. O país é um dos nossos maiores parceiros comerciais e não pode ser considerado apenas de um ponto de vista do alinhamento com os EUA. Novamente, as questões de interesse nacional e de cunho comercial também precisam ser consideradas.

7 Os movimentos migratórios hoje se misturam com o medo do terrorismo e a sublevação de nacionalismos que tendem à xenofobia. Quais são os perigos e as respostas para esse nó que parece impossível de ser desatado?

Acho que a questão das migrações globais é um dos maiores desafios que enfrentaremos nos próximos anos. Atualmente, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, existem no mundo cerca de 68 milhões de deslocados forçados. As causas para esses deslocamentos são diversas, variam desde conflitos como a Guerra Civil Síria, perseguições religiosas e instabilidades políticas até mesmo mudanças climáticas, como é o caso dos habitantes de Tuvalu, uma pequena ilha no pacífico prestes a desaparecer nos próximos anos devido ao aumento do nível do mar. Ao mesmo tempo, é também um fenômeno global, não mais restrito apenas a uma região do mundo, como a África ou o Oriente Médio. Por isso, é uma questão que precisa ser abordada em conjunto, por todos os Estados da sociedade internacional. O maior problema, creio eu, é querer resolver o problema partindo de pressupostos ideológicos. Para alguns setores da direita, sobretudo na Europa e nos EUA, tudo isso não passa de um plano das elites globalistas para a implantação de um governo global. Por outro lado, alguns setores da esquerda de fato defendem um mundo multicultural sem fronteiras e muros. Os dois grupos, porém, são incapazes de oferecer soluções adequadas para a questão e, como consequência, temos visto o aumento tanto do terrorismo como do aumento da xenofobia.

A crise de refugiados sírios é um exemplo claro disso. As primeiras ondas de refugiados sírios tiveram início ainda em 2011, mas só se tornaram problema de fato para os países europeus em 2014 e 2015, quando países fronteiriços da Síria, como Jordânia e Líbano, se tornaram incapazes de absolver mais refugiados e os sírios foram obrigados a atravessar o Mediterrâneo em busca de refúgio na Europa. Sensibilizada com a situação, Ângela Merkel decidiu abrir as portas da Alemanha para os refugiados, porém, sem nenhuma triagem prévia. Qualquer pessoa poderia chegar ao país e solicitar refúgio. Isso fez com que muitos migrantes econômicos e até requerentes de refúgio de outros países, como Afeganistão e Irã, se aproveitassem do drama sírio para tentar a vida na Europa. Ao mesmo tempo, a maioria dessas pessoas não possuía documentos legais para chegar ao continente europeu e requerer refúgio na Alemanha, tendo em vista as restrições do Tratado de Schengen. Para isso, recorreram a redes criminosas de tráfico humano e até mesmo a radicais islâmicos, criando um negócio bastante lucrativo, como expõem Loreta Napoleoni no livro Mercadores de Homens. Esse fato levou a uma reação em cadeia em vários países europeus, sobretudo na Hungria e na Polônia, alimentando ondas de xenofobia e facilitando a ascensão de grupos de extrema direita e políticos populistas.

Ainda assim, é necessário ressaltar que praticamente todos os atentados terroristas cometidos pelo Estado Islâmico na Europa foram realizados por nativos, não por refugiados. Além disso, vários refugiados iraquianos que estavam na Europa, sobretudo yazidis e outras minorias religiosas, decidiram voltar para o Iraque, em virtude das ameaças que passaram a receber dos militantes europeus que se juntaram ao Estado Islâmico, e ao voltar para seus países de origem não foram punidos pelas autoridades europeias.

Diante de todo esse caos, porém, é possível encontrar soluções por meio da cooperação internacional. O Brasil, por exemplo, com sua Nova Lei de Migração e Resoluções do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), instituiu o visto humanitário para sírios, e agora, para venezuelanos. A medida permite que os requerentes de refúgio passem por uma triagem antes mesmo de entrar no país, evitando assim riscos à segurança nacional e possibilitando o ingresso legal dos migrantes forçados em território nacional. É desse modo, por exemplo, que funciona o programa de reassentamento de refugiados dos EUA, que em 2016, por razões puramente populistas, foi suspenso por Trump, e este ano teve o número de vagas reduzidas.

Logo, acredito ser possível conciliar proteção aos direitos humanos dos refugiados e migrantes forçados sem, contudo, abdicar da segurança nacional. Para isso, no entanto, é necessário ir além dos reducionismos ideológicos. Fechar fronteiras não vai fazer com que os migrantes forçados desapareçam, e criar campos de refugiados só vai contribuir ainda mais para a proliferação do terrorismo e de atividades criminosas. Por outro lado, abrir fronteiras de maneira indistinta, além de prejudicar os próprios refugiados, pode também fortalecer movimentos radicais e ondas de xenofobia. A solução passa pela negociação e cooperação internacional, ressaltando a importância tanto dos fóruns multilaterais como da soberania estatal.

8 Você é cristão, e há, de fato, perseguição a cristãos mundo afora. Esse tipo de atentado quase nunca é levado a sério pelo mainstream jornalístico, que costuma se ocupar com outros grupos tidos como minoritários. Qual é a sua percepção do problema da liberdade religiosa, em geral, e dos cristãos, em particular?

De acordo com pesquisas do Pew Research Center, os cristãos são o grupo religioso mais perseguido no mundo. No entanto, os casos de violência contra os cristãos de fato quase não são mencionados na mídia, tanto nacional como internacional. Acredito que a razão disso está na crescente secularização ocidente, bem como em preconceitos arraigados acerca da fé cristã. Muitas pessoas ainda repetem a ideia de que o Cristianismo é a religião do homem branco ocidental. A realidade, porém, é bem diferente disso, como mostra o historiador Philip Jenkins em seu livro A Próxima Cristandade, que relata o crescimento da religião no chamado Sul global, em países da África, Ásia e América Latina. Na maioria desses lugares, os cristãos são minorias religiosas e são vítimas de diversas formas de perseguição, seja por setores da sociedade, grupos radicais islâmicos, movimentos nacionalistas ou governos totalitários, como demonstram Paul Marshall, Nina Shea e Lela Gilbert no livro Perseguidos: o ataque global aos cristãos.

No caso do Oriente Médio e da Etiópia, por exemplo, as comunidades cristãs quase não mantém relações com o Cristianismo ocidental, sendo herdeiras de tradições milenares que remontam aos primeiros discípulos de Cristo. Essa é a situação dos cristãos assírios no Iraque e coptas no Egito, que têm sofrido muito com as ações de grupos radicais islâmicos, como o autoproclamado Estado Islâmico. Outro fato que também contribui para essa omissão é a falta de discussões sobre a importância da liberdade religiosa como um direito humano fundamental nos fóruns internacionais. Com exceção dos EUA, com sua Comissão Internacional de Liberdade Religiosa, são poucos os países que incorporam a temática como um item de suas agendas de política externa.

 

(Segunda e última parte da entrevista)

 

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