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por Igor Sabino

No momento em que escrevo estas palavras, o número de mortos no Brasil pela covid-19 já totaliza quase 22 mil pessoas, podendo chegar logo a 80 mil, segundo projeções de professores do departamento de Ciência Política da UFPE. Voos entre o Brasil e os EUA acabam de ser cancelados, e caminhamos para nos tornar o epicentro mundial de uma das maiores pandemias da história. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro continua a fazer pouco caso da doença, intercalando discursos negacionistas com defesas de intervenção medicamentosa sem eficácia cientificamente comprovada. Ao mesmo tempo, faz questão de descumprir protocolos sanitários, incentiva aglomerações e participa de manifestações antidemocráticas.

Não é sem motivo que a sua popularidade cai numa constante, chegando a cerca de 30%. Apesar de tudo isso, o apoio continua alto entre evangélicos das mais variadas denominações: desde igrejas históricas de tradição reformada até as mais pentecostais e neopentecostais, adeptas da famigerada teologia da prosperidade. Muitos se perguntam quais seriam as causas desse fenômeno. Como cientista político, ainda não sou capaz de dar uma resposta muito acurada. Porém, acredito estar em uma posição que me permite dar alguns palpites. Afinal, também sou evangélico, conservador e, infelizmente, votei em Bolsonaro no segundo turno, apesar de sempre lhe ter criticado abertamente durante todo o pleito eleitoral. Hoje, junto-me aos muitos brasileiros que se espantam não apenas com a conduta do presidente, mas também com a dos cristãos evangélicos que insistem em apoiá-lo. Parte desse apoio pode ser explicado pelos mesmos motivos que me levaram, e a muitos outros evangélicos, a “tapar o nariz” e apertar 17 naquele fatídico outubro de 2018.

Percebo que ainda há certa dificuldade por parte da mídia e da academia brasileiras em compreender o papel que a religião desempenha na escolha do voto evangélico. Embora defendamos o Estado laico e a divisão entre Estado e Igreja como heranças da Reforma Protestante, acreditamos em valores morais absolutos e, em um espaço democrático, lutamos para que eles possam ser respeitados. Isso é particularmente verdade em questões como aborto, casamento heterossexual monogâmico e liberdade religiosa. Logo, para muitos evangélicos, vivemos uma guerra cultural. Pautas de partidos de esquerda e movimentos sociais são concebidas como ameaças que precisam ser combatidas a todo custo. Isso é o que leva evangélicos nos EUA a fazerem vista grossa aos comentários machistas e xenofóbicos de Donald Trump, e levou muitos a fingir não terem ouvido as falas de Bolsonaro de apologia à tortura e seus flertes com o autoritarismo durante todo o período anterior de sua vida como deputado federal.

Alguns, inclusive eu, eram cientes dessas falhas, e até as apontaram de forma bastante enfática durante as eleições. Ainda assim, entre termos que escolher um político claramente inepto e preconceituoso e o representante de um dos partidos mais corruptos da história brasileira, defensor de várias pautas abertamente inconciliáveis com a fé cristã, escolhemos o primeiro. Não que Bolsonaro não tivesse posições contrárias ao cristianismo. Tinha sim, e muitas. Mas justificamo-nos dizendo a nós mesmos que ele era o “menos ruim”. Por exemplo, seria contra o aborto, o que consideramos uma das formas mais cruéis e covardes de assassinato. Se ao final não desse certo, faríamos oposição. Era uma decisão baseada no que o professor americano de ética política Daniel Stans chamou de “pragmatismo cristão”, em um artigo na Providence, ao defender a postura de Albert Mohler, presidente do Seminário Teológico Batista do Sul, de apoiar Trump na campanha das eleições deste ano para o segundo mandato.

Mohler é uma figura importante do evangelicalismo calvinista nos EUA, bastante respeitado no meio aqui no Brasil. A postura dele causou espanto pelo fato de em 2016 ter publicamente feito oposição a Trump com base em questões morais. Segundo Stans, na política, é necessário fazer concessões e, embora a moralidade seja uma questão importante, não é a única que prevalece, levando os cristãos a fazerem escolhas difíceis, tendo que tomar decisões baseadas em causas, não em personalidades, já que nunca haverá um candidato totalmente alinhado com os valores cristãos. Eu consigo entender esse raciocínio e não julgo os que assim pensam, em especial no contexto específico estadunidense. Entendo a questão das concessões políticas, principalmente devido à maneira como enxergo a política internacional, minha principal área de estudo. Além disso, foi esse pensamento que me levou a votar em Bolsonaro no segundo turno.

De início, havia decidido votar nulo. Mas, segundo vários amigos próximos e líderes que eu respeitava, agir assim seria um ato de covardia. Eu precisava tomar uma decisão, ainda que deixando clara minha oposição a várias das posturas de Bolsonaro. Embora fosse bastante crítico da política externa brasileira lulopetista, era ciente de que Olavo de Carvalho poderia causar um estrago ainda maior na nossa inserção internacional. Entrei na faculdade de Relações Internacionais aos dezesseis anos de idade e, em meu momento de “rebeldia” adolescente, li algumas obras do “Rasputin da Virgínia”, como diria o diplomata Paulo Roberto de Almeida. Meses depois, bastou uma rápida lida nos clássicos de teoria de RI para eu ver que a tese do globalismo não se sustentava, levando-me a desconsiderar basicamente tudo que Olavo e seus seguidores escreviam. Ainda assim, decidi ignorar meus temores e acreditar nos boatos, vindos de pessoas em quem eu confiava e tinham certo acesso a Bolsonaro, de que teríamos um chanceler conservador, porém técnico, um funcionário de carreira do Itamaraty. Além disso, Bolsonaro também poderia ajudar a mudar dois aspectos que eu sempre critiquei em nossa política externa, adotando uma agenda de defesa da liberdade religiosa em fóruns multilaterais e um padrão de votação na ONU que se opusesse às muitas resoluções contrárias a Israel.

De fato, o chanceler escolhido foi alguém do Itamaraty, mas isso significou exatamente o que eu mais temia, já que Ernesto Araújo não passa de um fantoche de Olavo de Carvalho. Ao mesmo tempo, o posicionamento “pró-Israel” e pró-liberdade religiosa manifestaram um custo muito elevado. Não demorou para que eu me arrependesse do meu voto e percebesse que o meu “pragmatismo cristão” não havia sido “suficientemente realista”, como afirma o professor Bryan T. McGraw em seu artigo, em resposta a Stans e Mohler. Assim como para Trump a defesa da liberdade religiosa e de Israel não passam de moeda de troca com o eleitorado evangélico, para Bolsonaro esses são apenas temas politicamente incorretos que o tornam ainda mais popular em sua base, apesar das críticas advindas da mídia e do establishment. Ou seja, não existe um compromisso verdadeiro com elas – é apenas demagogia.

Ainda no caso específico de Bolsonaro, contribuem como fundamento a essa leitura as muitas vezes em que ele e membros do seu governo flertaram abertamente com o antissemitismo. A última delas foi no mês passado, quando Ernesto Araújo afirmou em um artigo publicado em seu blog pessoal que todos aqueles que defendem o isolamento social como forma de combate à covid-19 são semelhantes aos nazistas favoráveis aos campos de concentração. A frase gerou bastante controvérsia não apenas na comunidade judaica brasileira, mas mundial, principalmente pelo fato de que Israel se tornou um dos países – até o momento – mais bem-sucedidos no combate ao coronavírus, exatamente por ter adotado medidas estritas de isolamento social por quase dois meses. Ao ser acusado de antissemitismo, a estratégia de Araújo foi simples: afirmar que a mídia distorceu suas palavras, atacando Guga Chacra no Twitter por compartilhar a nota de repúdio da Confederação Israelita do Brasil, e insistir que não poderia ser chamado de antissemita porque defendia Israel perante a ONU. O sionismo bolsonarista é muito diferente do chamado “Novo Sionismo Cristão” que defendo. Aquele não é baseado no reconhecimento das ligações bíblicas e históricas do povo judeu com o Oriente Médio, tampouco na visão dos profetas do Antigo Testamento, de que Israel seria uma luz para as nações. Muito pelo contrário, é a defesa de um Israel imaginário, engajado em uma cruzada antiglobalista.

Foi diante desse cenário que percebi não ser mais possível permanecer em silêncio, e vi o quanto o moralismo na política ainda deve ser importante para os cristãos. Ajudei a eleger um homem que se dizia “pró-vida” por ser contra o aborto, mas que a cada dia demonstra se importar cada vez menos com ela, ao desdenhar da morte de mais de 20 mil brasileiros e manter o país em um eterno período eleitoral, durante um dos momentos mais difíceis da humanidade. Votei em um homem que, segundo o Telegraph, pode entrar para a História como o presidente que quebrou o Brasil; segundo o Financial Times, um populista que está conduzindo o Brasil ao desastre; e, de acordo com jornais israelenses, criou um “carnaval da morte”. A estratégia parece ser a de adotar um comportamento político cada vez mais radical, valendo-se do apoio de evangélicos e de outros grupos facilmente atraídos por um discurso moralista demagogo, ao portar-se como a única alternativa à volta do PT e aos partidos de esquerda. Mesmo que para isso sejam defendidas medidas autoritárias. Nesse pragmatismo, porém, muitos acabam querendo justificar o injustificável, negociando valores cristãos e culpando a mídia, a academia e até a ciência por todos os erros cometidos pelo presidente.

Afirmo isso não como uma maneira de apontar o dedo contra os meus muitos irmãos evangélicos que ainda apoiam Bolsonaro. Pelo contrário, afirmo-o por uma questão de foro íntimo, de ser fiel à minha consciência (que, como afirmou Lutero, esteja sempre cativa à Bíblia) e na tentativa de reparar o que considero um erro que cometi. Entendo que muitos evangélicos ainda tenham seus motivos para continuar apoiando Bolsonaro, insistindo no pragmatismo. A esses, convido que participemos de um debate sincero, sem julgamentos mútuos, para repensarmos a nossa atuação política, avaliando até que ponto o pragmatismo é positivo, e quando, ao contrário, precisamos ser moralistas estritos, como consequência da fé que professamos.

A igreja evangélica, assim como a sociedade brasileira de modo geral, está cada vez mais polarizada. Por isso, penso que o debate sobre pragmatismo e moralismo é uma urgência. Até o momento, a maior parte das discussões sobre o assunto no meio evangélico é marcada pela falta de caridade e pela troca de acusações de falta de ortodoxia cristã ou idolatria política. Ambas as denúncias, infelizmente, têm um fundo de verdade, já que muitos progressistas que se afirmam evangélicos não têm nenhum problema em renunciar a princípios bíblicos, relativizando elementos centrais do cristianismo em nome de políticas identitárias e afins. Por outro lado, não são poucos os cristãos conservadores que corretamente apontavam esses erros, e que, além de terem apoiado Bolsonaro nas eleições, hoje permanecem em completo silêncio quanto aos erros do presidente.

No meio de tudo isso, vemos cristãos sinceros que não se encaixam em nenhum dos dois grupos e muitas vezes não sabem direito como agir, temendo gerar ainda mais divisões e serem impiedosos. É onde me encontro, e a razão pela qual, talvez de forma ingênua, insista na importância desse diálogo que muito provavelmente não ocorrerá em círculos neopentecostais ou onde as teorias conspiracionistas de Olavo de Carvalho ainda são muito influentes. Acredito, porém, que no meio reformado em que me encontro, pelo menos em termos intelectuais, temos todas as condições de iniciar esse debate, ao menos por enquanto. Isso permitiria, por exemplo, o surgimento de uma oposição cristã conservadora contra Bolsonaro, que não se confundiria com a chamada “esquerda evangélica”. Também possibilitaria um diálogo melhor entre os próprios cristãos, sem julgamentos mútuos e com mais caridade.

Nos últimos anos, os calvinistas brasileiros realizaram inúmeros seminários e congressos em igrejas sobre cosmovisão cristã e os perigos do chamado marxismo cultural. Agora pode ser a hora de falarmos sobre o falso cristianismo pregado pelo bolsolavismo. Ao abordarmos as chamadas pautas morais, precisamos ir além de temas como aborto e sexualidade. É necessário falar sobre violência contra a mulher, racismo e cuidado com imigrantes e refugiados. Precisamos que a nossa agenda política seja realmente ditada pelo evangelho de Jesus Cristo, não pelo partidarismo ideológico. Como afirma Timothy Keller, influente pastor nova-iorquino, a Bíblia não é um manual sobre política. Logo, ao buscarmos obedecê-la, estaremos necessariamente fora da dinâmica limitada entre esquerda e direita.

Faço votos para que, mais do que escolher entre pragmatismo e moralismo, os evangélicos brasileiros decidam, acima de tudo, ser fiéis ao Deus cuja palavra afirmam defender. A começar por mim.

Igor Sabinoé Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e alumnus do Philos Project Leadership Institute. Realizou trabalhos humanitários em ONGs de Direitos Humanos ligadas à American University of Cairo, no Egito, e pesquisas de campo na Polônia, Israel, Territórios Palestinos, Líbano e Jordânia relacionadas a migrações forçadas e perseguição religiosa.

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