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Como se invejasse a arte, a vida escreveu uma trama digna das melhores narrativas de mistério: num intervalo de pouquíssimas horas, um após o outro, morreram Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza. Os dois maiores escritores brasileiros da ficção policial mortos em sequência. Será Deus um assassino em série dedicado aos escritores de crime? Mistério para Auguste Dupin.

É como se um arco estético se fechasse. No país, Rubem Fonseca não foi o primeiro a explorar o gênero, mas certamente foi o primeiro a fazê-lo com gênio. Todos os que escrevem prosa urbana e policial (e não só) aprenderam alguma coisa com ele. Seja por imitação, seja por contraste.

Algumas vocações são tardias. Garcia-Roza era um respeitado psicanalista, já com 60 anos de idade, quando publicou O Silêncio da Chuva, que apresentava o humanismo desencantado do detetive Espinosa e sua estante para livros feita de livros.

Isso lembra a trajetória do professor de semiologia e estética medieval que, para se distrair das ocupações acadêmicas, resolveu misturar referências, citações e metalinguagem num calhamaço intitulado O Nome da Rosa, que faria de Umberto Eco uma irônica celebridade.

Talvez o próprio Eco não tenha sido o mais genuíno dos escritores policiais, mas sua metaliteratura de mistério trouxe respeitabilidade e atenção a um gênero que, para meu juízo, foi maldosamente encurralado no sórdido beco dos subgêneros.

Ora, a literatura policial é, ou pode ser, literatura – sem adversativas nem reducionismos. Basta que seja boa.

Otto Maria Carpeaux, scholar austríaco radicado e morto no Brasil, insuspeito de interesses fortuitos e populismos estéticos, era leitor voraz. Na saudosa revista Senhor defendeu e justificou “os prazeres do crime”. Jorge Luis Borges, escritor de escritores, lia e escrevia contos à sua maneira.

Desde que Edgar Allan Poe publicou Os Crimes da Rua Morgue, o (assim etiquetado) gênero policial multiplicou leitores e escritores, adeptos fervorosos e quase sempre envergonhados, como se se tratasse de passatempo vulgar, praticado no descanso de outras atividades de respeito intelectual.

Bobagem.

Primeiro, porque existem autores, tramas, propostas e esquemas para todos os gostos e exigências. Segundo, porque os temas recorrentes e suas variações são universais: morte, medo, amor, verdade, ordem, moral, redenção.

O que será Crime e Castigo senão uma espécie de noir russo?

Que o desaparecimento de Rubem Fonseca e Garcia-Roza faça reaparecer o interesse por seus livros e pela ficção policial e de mistério. Existem dezenas e dezenas de grandes escritores, dos clássicos aos contemporâneos, dos cerebrais aos viscerais, da Itália à Noruega, de Hercule Poirot a Nero Wolf, de Georges Simenon a Raphael Montes. Tem pra todo mundo.

Citar meus preferidos ou os historicamente mais importantes me faria cometer injustiças. Pior: me faria cometer crimes de verdade. Indico ao leitor interessado o Segredos do Romance Policial (Três Estrelas, 2002), de P. D. James, ela própria excelente romancista. No Brasil, o site Literatura Policial, de Ana Paula Laux, é referência incontornável.

De resto, basta começar a ler. Sem medo (salvo o despertado pela trama) nem preconceito (salvo o que a trama, para fins estéticos, estimular). Menos ainda, pretensões didáticas (ler livros policiais para aprender a ler outros livros). Pelo sim pelo não, entre todos os prazeres da carne, talvez os prazeres do crime sejam os mais inocentes. E ler não é crime.

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