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Para ler na madrugada, de olhos bem abertos
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Por Cassionei Niches Petry

Haruki Murakami seria um daqueles escritores que estaria longe dos meus planos de leitura. Não exatamente por seu um best-seller. Não tenho esse preconceito, porque antes de desprezar um autor por vender muito, procuro ler opiniões sobre ele. O escritor japonês divide a crítica e isso é bom, pois mostra que há algo a ser explorado.

Comecei com a leitura da trilogia 1Q84, afinal há a referência ao clássico de George Orwell e também porque traz escritores como os protagonistas, temática que me atrai. Foi uma escolha acertada. Apesar de algumas passagens dispensáveis, certo didatismo e elementos de fantasia que beiram o infantil, a narrativa me provocou, me inquietou, me incomodou. É o que busco na literatura.

O segundo livro que li de Murakami é considerado sua melhor obra: Crônica do pássaro de corda. É uma “viagem ao fundo do eu”, um tratado sobre as mais recônditas estâncias da nossa psique simbolizada ora num beco, ora num poço, pessoas que cruzam por nosso caminho, o tempo que passa e a guerra que nos destrói.

Justamente o primeiro capítulo desse romance gera o conto que abre a coletânea O elefante desaparece (Alfaguara, 301 páginas, tradução de Lica Hashimoto), lançada antes de Crônica… no Japão e aqui depois do romance.  O relato recebe o título “O pássaro de cordas e as mulheres de terça-feira” e, lido isoladamente, ganha uma nova perspectiva. No entanto, para quem leu a narrativa que deu prosseguimento à história, todas as possibilidades de interpretação do enredo tornam-se limitadas, pois já se sabe o que vai acontecer com o protagonista depois de sair à procura do seu gato Noboru Watanabe, que recebera o nome em homenagem ao irmão da esposa do narrador.

O nome Noboru Watanabe, diga-se, é um nome recorrente. Mais dois personagens da coletânea de contos recebem a mesma denominação. Em “Caso de família” também é Noboru Watanabe o cunhado do narrador, assim como o tratador que some junto com o elefante que dá título ao livro. Ao que parece, são personagens inspirados num cunhado do próprio Murakami, do qual ele não gostava muito.

Meu conto preferido da coletânea também já é conhecido pelos fãs do autor. “Sono” foi lançado pela Alfaguara em um volume com ilustrações de Kat Menschik, porém eu não o havia lido. A protagonista e narradora, há 17 noites sem dormir, acaba levando uma vida paralela durante o tempo em que está desperta. Antes cuidando apenas do lar, do marido e do filho, numa vida monótona (“Se eu trocasse o ontem pelo anteontem, não faria diferença alguma.”), o fato de estar acordada parece que faz despertar o outro lado dela antes escamoteado. Durante a madrugada, passa a ler livros como fazia antes de casada (não por acaso o livro escolhido é Anna Kariênina, de Tolstói) e também volta a beber. São as saídas de casa, porém, que podem não trazer um bom desfecho para a personagem.

Outro conto muito bom é “O segundo assalto à padaria”, em que um casal comum acorda de madrugada (as madrugadas de Tóquio são recorrentes nos contos do livro) com muita fome e decide assaltar uma padaria depois de o marido contar sobre um de seus atos delinquentes da juventude. Acontece que os dois encontram apenas uma loja do McDonald’s aberta:

“−Vamos assaltar aquele Mcdonalds – ela decidiu, com a naturalidade de quem anunciava o menu do jantar.

− O McDonald’s não é uma padaria.

− É como se fosse – retrucou ela, e voltou para o carro. – Às vezes é necessário fazer concessões. Vamos.”

No geral, há contos medianos, parecendo mais esboços de obras que Murakami não levou adiante. Ainda assim, é uma leitura que se torna prazerosa devido à exploração da linguagem. Em um dos contos, o escritor propositalmente exagera nos símiles, como se percebe neste exemplo: “minha memória é boa e confiável como a tampa de um forno de fundição”. Ou neste: “Uma placa fina e comprida se dobrava em noventa graus, como um entusiasta do sexo anal.” É esse tipo de estranhamento que me incomoda. Mais um ponto positivo para Murakami até agora. Resta encarar os outros calhamaços do autor e comprovar se o japa realmente é bom.

*

Cassionei Niches Petry é Mestre em Letras-Leitura e Cognição, professor de Literatura e Línguas Portuguesa e Espanhola no Ensino Médio. Autor dos livros de contos “Arranhões e outras feridas” (Multifoco) e “Cacos e outros pedaços” (Penalux), do romance “Os óculos de Paula”, (Livros Ilimitados) e do livro de crônicas e ensaios “Vamos falar sobre suicídio?” (Kindle/Amazon). Atualmente, é colunista do site Digestivo Cultural, Portal Entretextos e colabora com o Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre – RS.

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