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Qual é a desse papa?
| Foto: AFP

Iniciado o Sínodo da Amazônia, o papa Francisco é acusado de ser globalista, comunista, ambientalista, indígena. Aliás, eis um título que, para alguns, ele não merece: o papa é cardeal, “cardeal Bergoglio”, e o cardeal Bergoglio é conservador de menos. O cardeal Bergoglio é ecumenista demais. O cardeal Bergoglio é argentino e torce para o San Lorenzo.

Se há uma coisa pior do que os ateus, militantes ou não, é o advento dos tradicionalistas radicais, que infestam as colunas e os bancos e os altares como caruncho teológico, debilitam o corpo da Igreja como fungo moral, certíssimos de suas suspeitas e gulosos de seus rigores, imunes ao bom senso e ariscos à humildade.

Certezas assim inabaláveis só as têm os soberbos e os hereges, porque em todo crente sincero há um recalcitrante que teme – e faz bem em temer – a falta de fé. Se estou certo demais da minha fé, se me orgulho disso, se meço as dúvidas alheias com a régua das minhas certezas, estou próximo do cadafalso. Pedro negou Cristo três vezes. Hoje, Pedro é Francisco.

Desde o fim do Concilio Vaticano II, inúmeros grupos, com maior ou menor grau de influência, cultivam o nobilíssimo hábito de apontar as falhas, os pecados e as fraturas internas do clero. É mais ou menos como se você tivesse por costume publicar à vizinhança todos os defeitos de sua mãe. Mas não basta que os vizinhos saibam: eles têm de se convencer de que sua mãe é mulher da vida e não tem salvação.

Tais confrarias quase não fazem outra coisa: corroem a Igreja e provocam pequenas dissensões doutrinais. São insuperáveis na arte de lançar suspeitas sobre quaisquer católicos que porventura não sejam (a depender de seu julgamento) tão católicos quanto eles. E é impossível, eu garanto, ser tão católico quanto eles. Nem o papa – para ser exato: nenhum papa, de 1965 para cá – é tão católico quanto eles.

Como as tradicionais bonecas russas, há sempre tradicionalistas mais tradicionalistas dentro de outros grupos tradicionalistas que divergiram dos primeiros tradicionalistas, e uns e outros nunca são tradicionalistas o bastante. Acusam-se com razoável frequência, mas todos, porém, concordam que o papa é o que menos entende do papado.

São sedevacantistas práticos. Nunca vão admitir, é evidente, pois sabem das consequências de fazê-lo: o Código de Direito Canônico está sempre à mão. Mas se os protestantes interpretam livremente as Escrituras, alguns católicos, a seu modo cripto-protestantes, acham razoável interpretar livremente a Tradição.

Como ciosos doutores da lei, leem os movimentos da Igreja – do clero e dos leigos – com um cuidado bastante peculiar: ouviram dizer que “As portas do inferno não prevalecerão”, mas nunca se sabe se o Espírito Santo está mesmo atento. De repente, prevaleceram. Papa Francisco – retifico: cardeal Bergoglio – é a prova.

Sei das suas piedosas justificativas: são leigos defendendo a Igreja de si mesma, e tudo aquilo que o papa não diz ex cathedra pode ser discutido abertamente, e as fotos, e os documentos, e os códigos, e a rendinha da roupa do coroinha não estão lá muito de acordo com as conveniências.

Dizem uns para os outros, quase entre lágrimas, que “Aqueles que lutam pela verdade de Cristo serão mesmo perseguidos, está lá na Bíblia, está lá no manual, está lá na regra, não está?” E não percebem que talvez seja esse, exatamente esse, seu erro: acreditam-se perseguidos por causa da verdade quando, de fato, são seus maiores e mais íntimos perseguidores. Como Judas, antes do beijo. Como Saulo, antes da conversão.

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