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Juliette Drouet - Noël, Alphonse-Léon (OBI)
Juliette Drouet - Noël, Alphonse-Léon (OBI)| Foto:

 

Em resposta ao texto Contra o aborto, leitora me escreve mais ou menos nos seguintes termos: 

Você defende m****. Parei de ler você! Tinha que ser um homem pra dar essa opinião e dizer que o aborto não é um exercício de liberdade individual da mulher! Que artigo arrogante!

 

“Você defende merda.”

Escrevo um texto que apresenta um livro: ambos, texto e livro, assumem posição contra o aborto. Compreendo perfeitamente quem seja a favor do aborto, ou melhor, quem seja a favor da descriminalização do aborto, quando se considera a condição da mulher em determinados casos (estupro, risco de vida). No entanto, a reação da leitora deixa claro que defender posição contrária ao aborto é “defender merda”. Simples assim. A opinião de uns é respeitável; a de outros é “merda”. A tolerância de quem se diz tolerante é intolerante demais para o meu gosto.

“Parei de ler você.”

Também conhecido como: “Eu te lia, mas não admito ler uma opinião sua que seja diferente da minha”. Sintomático.

“Tinha que ser um homem pra dar essa opinião…”

Lugar de fala. A depender de onde opino, minha opinião valerá mais ou menos, ou coisa nenhuma. Como sou homem, não posso opinar sobre nada que diz respeito à vida das mulheres (mesmo quando não se trata apenas da “vida das mulheres”). Meu lugar de fala é outro, inteiramente outro. Não existe tradução, contato, ponte, conexão possível entre o lugar de fala em que habita um homem e o lugar de fala em que habita uma mulher. Homens estão na churrasqueira, mulheres no coração das trevas.

De todos os argumentos, esse sempre me pareceu o mais descabido. Estúpido, até. Ora, se realmente o lugar de fala determina não somente a experiência da qual o argumento é transcrição, mas também a própria impossibilidade de comunicar essa experiência e esse argumento, então o lugar de fala é o lugar da incomunicabilidade. Da falta de compaixão. Se a mulher não acredita que me pode comunicar sua experiência, seu sofrimento e suas dores, não posso compreendê-la. Se não posso compreendê-la, não posso me compadecer dela e, quem sabe?, aceitar suas razões.

A ideia de que só se pode falar sobre aquilo que se experimenta é, entre outras coisas, inumana. A comunicação – linguagem, arte, literatura, filosofia – pressupõe justamente isso: que somos capazes de transmitir ao outro nosso gozo e nossa dor. Quando já não acreditamos nisso, não comunicamos. Quando não comunicamos, perdemos a esperança de defender racionalmente nossas ideias. Se feministas, negros, homossexuais, imigrantes ou anões não admitem discutir comigo porque desgraçadamente não nasci mulher, negro, homossexual, imigrante ou anão, resta o óbvio: eles ficarão com suas dores, eu com as minhas. Posso continuar com meus conceitos, com meus preconceitos, sem que ninguém reclame.

“…e dizer que o aborto não é exercício de liberdade individual da mulher! Que artigo arrogante!”

De fato é surpreendente que nem todos concordem entre si. Quanta arrogância no meu artigo. Lugar de fala à parte, não é possível dizer, sem corar, que o abortamento é coisa que só diz respeito à mulher. Como se não houvesse o homem que contribuiu com a concepção; como se não houvesse o próprio concebido, que não é pedaço do corpo da mulher, mas um ser autônomo ainda que muito pequenininho para reclamar e ser ouvido; como se não houvesse ordenamento jurídico, valores éticos, questões outras que não a “escolha” da mulher. Posso admitir que a proibição ao aborto em todos os casos – inclusive naqueles hoje descriminalizados – é discutível; não posso admitir que o aborto seja tratado como assunto ligeiro, que só compete à mulher discutir, numa espécie de autismo axiológico que contraria a ideia de convivência minimamente civilizada. Quem não percebe isso está num cantinho tão distante do lugar de fala que já não pode ouvido por ninguém.

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