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Requiem para Alfie Evans
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São João Paulo II há tempos anunciava o sombrio advento do que chamou de “cultura da morte”. O fim da Guerra Fria, em vez de amenizar o cheiro de carne humana imolada no altar de tantas utopias, transformou a morte em coisa inodora, incruenta, a ser encomendada, higienizada, oferecida como produto ou serviço: do aborto em escala industrial ao assassinato puro e simples. Foi o que aconteceu com Alfie Evans.

Alfie não era a criatura ainda “indeterminada”, nas primeiras semanas depois da concepção, de que gostam de falar os ideólogos do aborto. Alfie era já um menino, e um menino doente. Não tinha sido abandonado: seus pais o queriam como menino, ainda que menino doente. Mas o Estado – o espírito do tempo – quis outra coisa.

A controvérsia é conhecida: portador de doença neurológica degenerativa, Alfie Evans precisava de aparelhos para sobreviver. A Alta Corte de Justiça Britânica, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a equipe médica que presumo altamente qualificada precisavam de outra coisa: que os aparelhos fossem desligados para que Alfie Evans não se tornasse um problema ético impertinente demais. Há outros doentes mais valiosos e menos problemáticos para tratar.

A vida tem incomodado, ultimamente. E não se enganem: a cultura de morte recruta militantes nas melhores famílias, nos mais limpinhos quadros ideológicos, nos mais civilizados países: dos EUA à Dinamarca, matar nascituros, bebês, doentes e velhos é uma atividade que une direita e esquerda, fascistas e liberais, feministas e misóginos.

Enquanto muitos liberais acreditam que o aborto e a eutanásia são liberdades inalienáveis do indivíduo diante do Estado, esquerdistas pretendem que o Estado garanta clínicas salubres, bem equipadas e gratuitas para todos. Se fascistas querem eliminar indivíduos de raças impuras, mulheres aburguesadas – como a “grã-fina de narinas de cadáver” – desejam que seus filhos não nasçam com falhas genéticas ou baixo quociente intelectual.

Alfie Evans poderia não ter sido tratado – e mantido vivo – na Inglaterra. Era uma opção: não quer?, tem quem queira. O problema é que a Inglaterra está mais preocupada com o bebê real, com a gravidez real, com o noivado real, com o pós-parto real, coisas muito dignas de preocupações reais. Compreensível. Há meninos e meninos: uns reais e outros não. Pois bastava que o menino doente fosse transferido para o país que o quisesse acolher (como a Itália, por exemplo).

Mas não: isso teria se transformado numa inconveniência diplomática, numa demonstração de fraqueza, numa transigência a valores outros que não os do Estado, da medicina moderna, da intelligentsia. Sabemos também que os ingleses são muito ciosos de suas maneiras e etiquetas, de seus chás e Churchils, mais ou menos como uma mãe severa que dissesse: “Do meu filho eu cuido!” No caso: “O meu filho eu mesmo mato!” Pois entre sobreviver na Itália e morrer na Inglaterra, não podia haver dúvidas: Alfie Evans morreu como um exemplar súdito da Coroa.

Quaisquer discussões acerca das possibilidades de sobrevivência em longo prazo de Alfie Evans são irrelevantes. O que estava em jogo – e não deveria estar em “jogo” nenhum… – é a concepção de que um Estado deve ser soberano sobre a vida humana em geral, e sobre a vida dos mais frágeis em particular. Não deve, não deveria. No caso, de uma vida concreta, pequena, fraca, carente, quase sem esperança. Uma vida com nome e sobrenome, pai e mãe.

Num tempo em que governos cuidam de nossa alimentação – se fumamos, se comemos gordura, açúcar e sal, se bebemos –, não deixa de ser cínico, diabolicamente cínico, que a vida em sua concepção ou em seus momentos mais frágeis seja tão relativizada. Protejamos os adultos sadios que fazem academia e praticam esportes; matemos os nascituros e os doentes, os velhos e os derrotados.

Disso tudo, restam duas certezas. A mensagem de João Paulo II em sua Evangelium Vitae tem de ser ouvida urgentemente – por cristãos e ateus, leigos e religiosos. E os ingleses, mesmerizados com suas ridículas cerimônias e sua estéril ideologia política, já não podem mais dizer: “O sol nunca se põe no Império Britânico.”

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