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Ridendo castigat mores
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O que peço, neste Natal, ao Papai Noel?

Primeiro, que exista. Se não houver Papai Noel, não haverá quem me realize os desejos.

Temos nossas controvérsias. Eu tinha oito anos quando metade da barba de algodão do Papai Noel me caiu no colo. Além da barba, senti o bafo dum Papai Noel vagamente alcoolizado, que denunciava atividades escusas e nada dignas de bom velhinho.

Tornei-me cético e pessimista. A barba de mentira e o cheiro de cachaça estragaram para sempre minha fé. Fiquei tirando os fiapinhos de algodão da minha camiseta listada e, de fiapinho em fiapinho, aderi ao pirronismo infantil. Nunca acreditei em mais nada, salvo nas ameaças da minha mãe e nas cobranças de pênalti do Evair.

A propósito: não sei se descobrir que Papai Noel não existe, aos oito anos, denuncia precocidade ou lerdeza. Precoce, em geral, nunca fui. Demorei até para aprender a andar de bicicleta (dezessete anos). Prefiro não me ater a outros pormenores e limitações menos publicáveis em jornal de família.

Voltando ao assunto, com que idade as crianças ficam espertas e cínicas, hoje em dia? Parece que aos dois anos; três, no máximo. Sou capaz de apostar que há bebezinhos sugando os seios da mãe, já tendo lido as preleções de Freud a respeito. O acesso à internet acabou com a inocência das criancinhas.

Mas nem tudo está desgraçadamente perdido, porque há um processo reverso acontecendo.

As crianças têm nascido incrédulas; aos três anos já se tornaram cínicas; aos cinco são nietzschianas; aos quinze adotam a tristeza schopenhaueriana; aos vinte, ouvem música indie; aos trinta, tomam cerveja IPA; aos cinquenta, recuperam a fé em tudo, acreditam em político, chupam a ideológica chupeta.

Peço ao Papai Noel que exista por uns instantes e realize uns poucos desejos. Vamos a eles.

Eu quero uma esquerda melhorzinha. Não essa, quase toda, que está aí. Uma esquerda que seja intransigente quando o assunto é liberdade, que exorcize de sua história qualquer menção ao comunismo, que escale os mais razoáveis para disputar eleições. Há gente razoável na esquerda.

Eu quero uma direita melhorzinha. Não essa, quase toda, que está aí. Uma direita que seja intransigente quando o assunto é liberdade, que exorcize de sua história qualquer menção ao autoritarismo, que escale os mais razoáveis para disputar eleições. Há gente razoável na direita.

(A semelhança não é coincidência, e isso é preocupante.)

Entre esquerda e direita, também seria útil se mais pessoas entendessem que essas definições são precárias, fluidas, cambiáveis, historicamente condicionadas e, muitas vezes, confundem, antes de esclarecer.

Por favor, Noel, enfia isso na cabeça desse povo.

Sei que a esquerda tem uma identidade mais estável que a direita. Ponto a considerar. Concedo que para, uso retórico e de debate, esses termos ainda servem; mas não servem para tudo, a todo momento. Servem cada vez menos. Não são conceitos científicos estritos ou fórmulas estáveis, que descrevem todas as propriedades de um objeto.

Desejo que políticos tenham menos poder do que têm, e que eleitores creiam menos do que creem. É impressionante: passamos anos e anos criticando o adesismo, a bajulação, a paquera de eleitores, intelectuais e jornalistas com os mandos e desmandos do PT, e temos agora adesismo, bajulação e paquera de eleitores, intelectuais e jornalistas com os mandos e desmandos do Bolsonaro.

Quero também, bom e bêbado velhinho, que Bolsonaro dê um jeito de aprovar a reforma da Previdência e privatizar meia dúzia de estatais estratégicas, e que lave a roupa suja, real e metafórica, na intimidade do lar e do partido. Ninguém, salvo a Michelle e o Onyx, precisa ver as presidenciais ceroulas e justificativas penduradas no varal do populismo.

Como disse outro dia um amigo, não faz sentido defender políticos, porque eles já têm poder demais. Os poderosos já são poderosos. Um ministro pode atrapalhar minha vida e a de todos vocês; eu não posso atrapalhar senão minha própria vida, e mesmo para isso preciso de ajuda, dada a minha incompetência até para ser incompetente.

Intelectuais, jornalistas, escritores e artistas são bichos que deveriam sempre manter distância segura de políticos; como Ulisses, atarracar-se ao mastro e deixar que as Sereias cantem até perderem a voz. Que as promessas dos políticos sejam como os fiapinhos de algodão grudados na camiseta dos leitores e eleitores.

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