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Será que o 6 a 5 é o novo 7 a 1?
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Senta que lá vem história.

O ministro relator Edson Fachin rechaçou a acusação de que a sociedade e o STF tenham sido tomados por uma sanha punitivista. O que se julga é o habeas corpus de Lula, condenado em duas instâncias, e não há mudança no entendimento do plenário da Corte que em 2016 decidiu pela legalidade da prisão. Lembrou ainda de casos em que a demora na punição de crimes provocou reação na Corte Inter-Americana de Direitos Humanos. Foi seguido por Alexandre de Moraes, que ponderou: os tribunais inferiores não podem se tornar de fato inferiores, irrelevantes, meros ritos de passagem. Teatro é bom mas tudo tem limite.

Luís Roberto Barroso e Luiz Fux entenderam que é civilizado e juridicamente razoável prender depois de segunda instância, como em tantos países se faz. Ademais, que a questão tenha entrado em pauta sob essas circunstâncias cheira – fede – a política. Não que sejam santos, nem perto disso. Mas neste caso optaram prudentemente por não reinventar a roda com o carro desgovernado em movimento.

Gilmar Mendes falou dos pobrezinhos e das criancinhas que não poderão recorrer ao Supremo Tribunal Federal para apreciar suas causas. Mudou de entendimento, de 2016 pra cá, depois de “refletir muito”. Sabedoria infusa. E confusa.

A ministra Rosa Weber, à parte os iniciais rodopios argumentativos, delineou seu voto com certa nobreza: ainda que subjetivamente tenha convicções diferentes, manteve a coerência teórica previamente determinada e votou contra a aceitação do habeas corpus apreciado. Ela entende que a segurança jurídica e a racionalidade do Direito dependem muito da previsibilidade jurisprudencial. Se a Corte votara de tal modo em tempo tão recente, 2016, não haveria motivos razoáveis para a brusca mudança de entendimento.

Já no fim de seu voto, entretanto, foi interpelada de maneira agressiva pelas sorumbáticas figuras de Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski, que votaram a favor do habeas corpus e da tese decorrente. Nada de surpreender. Entretanto, o questionamento de ambos tem fundamento no seguinte: se Rosa Weber foi foto vencido em 2016 e a partir de então houve por bem respeitar o princípio de colegialidade e votar com a Corte, o que acontecerá quando a questão em si mesma, a tese em abstrato, for novamente debatida? Se ela mudar seu voto e fazer valer sua convicção pessoal, terá ferido o espírito da colegialidade e da previsibilidade jurisprudencial que fundamentou seu voto neste caso em particular. A racionalidade de Rosa Weber está sub judice.

Ambos interromperam a fala da ministra e, pelo jeito, pretendiam convencê-la a mudar de direção. Trepidaram na cadeira e deixaram mais claro do que nunca que esse julgamento pouco ou nada tem a ver com a preocupação sincera com a “presunção de inocência”; tem muito ou tudo a ver com a expectativa de inocência de Lula da Silva e, por óbvio, de todos os outros que se seguiriam a ele. Seja qual for o resultado, uma coisa é certa: que triste a composição da Suprema Corte. Que triste.

Dias Toffoli votou com aquela expressão constrangedora de quem não sabe exatamente o que está fazendo ali, como aluno de faculdade que se enrola todo quando vai apresentar o trabalho para a classe, e fica dando uma olhadinha na cola e outra na cara dos colegas, até que se embanana todo e recebe uma nota 5, por misericórdia ou enfado.

Celso de Mello citou italianos e portugueses e falou de faxismo faxismo faxismo. Com aquele sotaque popular dele, uma chuvarada de erres, disse que o Supremo Tribunal Federal não pode se guiar pelo clamor popular. Tudo bem, ministro, estamos aqui só assistindo. Ninguém mexe em nada não. Porém também não pode – não poderia – o STF guiar-se pelo clamor político, econômico, partidário, casuístico. Ao contrário do que diz o ministro, a lei não é preto no branco, PT no PSDB. Se tudo fosse tão simples, até o Dias Toffoli teria virado juiz de verdade.

Enfim, a presidente da Suprema Corte, Cármen Lúcia. Teve suspense. José Roberto Batochio, advogado de Lula, apela ao regimento para impedir que a presidente vote. Em caso de empate, a decisão favoreceria ao réu. Cármen Lúcia retrucou que em matéria constitucional o presidente do STF vota. Muito civilizada, colocou seu direito de votar sob votação.

Resultado? Voto curto, simples, direto, frio, sem firulas. Segue o entendimento da Corte. É muito cedo ainda para festas, mas o 6 a 5 bem que podia se tornar o novo 7 a 1.

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Como tudo em Direito, há controvérsias e sempre haverá. Entretanto, não me parece suficientemente forte o argumento de que a prisão depois de segunda instância fere o princípio da presunção da inocência.

Ora, a essa altura tudo já foi investigado, periciado, ponderado, julgado e provado no primeiro julgamento, e novamente investigado, periciado, ponderado, julgado e provado no segundo julgamento. A partir daí, os recursos são de outra natureza; dizem respeito à aplicação da pena, à compreensível tentativa de protelar sua aplicação, a questões de direito – e não mais de fatos.

Não bastasse, cabe observar que a Constituição Federal – e de resto todo ordenamento jurídico – é um sistema de comandos e normas, e não uma sucessão de artigos isolados entre si. Portanto, como sistema, tem de corresponder a certa lógica interna, sob pena de terminar em aporias insanáveis.

De um lado temos a presunção de inocência como bem a ser preservado; doutro lado temos os bens protegidos pelo direito, que terão sido lesados pelo condenado. Se tomarmos o primeiro princípio – a presunção de inocência, mesmo depois de condenação confirmada em segunda instância – como absoluto, teremos de seguir com ele até aonde nos levarem no tempo os recursos protelatórios.

Enquanto isso, aqueles bens lesados restam indefesos, relativizados, até que anos, décadas depois, a depender das circunstâncias, o desnorteante percurso processual tenha enfim resolução.

A propriedade é um bem, mas não é absoluto. A liberdade é um bem, mas não é absoluto. A livre-associação é um bem, mas não é absoluto. Assim entende a Constituição e o bom direito: os bens são tutelados harmoniosamente, e não podem ser reduzidos uns aos outros.

A presunção de inocência é um desses bens e deve assim ser entendido: como bem valiosíssimo, mas não absoluto. Bem entre outros bens. Para isso existem inquéritos, julgamentos, perícias, juízes. Para isso existem tribunais. Se a prisão depois da condenação em segunda instância for compreendida como inconstitucional, dada a oportuna e oportunista leitura “fria” de certo artigo, então inquéritos, julgamentos, perícias, juízes e tribunais são um dispendioso e mil vezes repetido conto do judiciário.

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