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Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil| Foto:

Clubismo à parte, confesso estar perplexo com as reações ao incêndio que matou dez meninos e feriu outros três.

Antes de maiores investigações ou perícias, há responsabilidade objetiva do clube pelo acontecido. Os jogadores, todos muito novos, estavam alojados no centro de treinamento; no centro de treinamento foram queimados vivos. Estes são os fatos – brutos, horríveis, tristes, mas fatos.

Começam a surgir especulações: teria sido isso ou aquilo; as instalações eram boas ou não; a estrutura estava em ordem ou não estava; longo etc. Uma semana depois, sabemos que havia mais de trinta multas; que o local não tinha sido liberado para alojamento; que fizeram gambiarra no aparelho de ar condicionado; que o título de 87 não foi vencido pelo Sport.

Enquanto os dirigentes rubro-negros declaravam coisas de enrubescer até os advogados tricolores, a torcida, a imprensa mais simpática ao clube e os distraídos de ocasião subiam a hashtag #ForçaFlamengo.

Força, Flamengo.

For. Ça. Fla. Men. Go.

Faz tanto sentido quanto criar a hashtag #ForçaVale. Faria ainda mais sentido apoiar a Vale, aliás, porque morreram mais pessoas, o prejuízo é maior, os dirigentes e a empresa carecem de mais compreensão para superar esse trágico incidente.

Não é a mesma coisa? Pois é sim.

O fato de a Vale ser empresa que dê lucro não a torna mais culpada, mais feia, mais digna de punição que uma associação esportiva. No Brasil, clubes de futebol pretendem pairar acima dos valores e das categorias éticas da espécie humana.

A Vale é uma empresa que tem história, emprega gente, produz coisas e causou mortes. Foi, no mínimo, negligente. O Flamengo é um clube que tem história, emprega gente, produz coisas (para seu torcedor) e causou mortes. Foi, no mínimo, negligente.

Se a Vale merece punição exemplar, o Flamengo merece punição exemplar.

Por isso me soa cínico que os responsáveis pelo incêndio recebam condolências e afagos, e as vítimas se transformem em coadjuvantes da própria morte, em símbolos da tragédia que, aparentemente, vitimou o centenário clube, não os garotos. Parte da imprensa esportiva, ávida por choro e sentimentalismo barato, amplificou a inusitada inversão de valores.

“O Flamengo é maior do que tudo isso!”

O Flamengo é maior. Os meninos é que eram muito menores.

Sei bem, torcedor de futebol que sou, que a torcida e a história do time não têm culpa de nada: nem Zico, nem Junior, nem Nunes, nem Adílio – nenhum dos trinta milhões de anônimos flamenguistas têm culpa de nada. No entanto, o clube, para além de sua história, para além de sua glória, é também uma associação concreta, atual, milionária, ativa, altiva, imperial.

Hoje, o Flamengo é a Vale do futebol.

O que aconteceu no Ninho do Urubu não foi obra do acaso, de um deus vingativo, de uma intempérie ou do Botafogo que não botou fogo em ninguém. Foi obra deste Flamengo, deste poderoso Flamengo, que se orgulha da modernidade vistosa de seus prédios, há pouco tempo inaugurados.

Não, não se deve desejar força ao Flamengo, mas punição exemplar. Desejar um Flamengo um pouco mais fraco, um Flamengo cheio de cicatrizes, um Flamengo sangrando, um rubro-negro enrubescido. Tanto quanto os títulos e as glórias, os craques e os torcedores, essas mortes também foram conquistadas no clube, pelo clube, como sombrios troféus feitos de cinzas, lágrimas, dor e sonhos.

O cheirinho de impunidade fede. Há urubus sobrevoando o ninho.

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