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Tonny Johannot (OBI)
Tonny Johannot (OBI)| Foto:

III

No parco vocabulário político de nosso tempo, “corrupção” tornou-se a palavra que faz soar todos os alarmes e tocar todas as trombetas, e apela à nossa reação, aos nossos instintos mais nobres e domesticados, às nossas convicções republicanas e democráticas, à nossa higiene e à nossa pureza.

Sócrates, julgado democraticamente, foi condenado à morte por atentar contra a democracia de Atenas e, sobretudo, por corromper a juventude grega. Jesus Cristo foi crucificado por corromper a lei mosaica e arrebanhar discípulos desavisados.

A corrupção serve de peça de acusação e de defesa, indistintamente. Corruptos submetem o sistema político às suas necessidades, manipulam a opinião pública, cerceiam liberdades e conduzem povos e nações a disputas perdidas, à derrocada econômica, a guerras e convulsões sociais.

Situação e oposição transitam livremente entre propostas que guardam mais semelhanças que diferenças. A esquerda acusa a direita de corromper o sistema político para perpetuar suas elites no poder. A direita acusa a esquerda de corromper as instituições para tomar o poder e fazer surgir a “nova classe”. É um caso raro em que todos estão inapelavelmente certos.

Campanhas começam e campanhas terminam sob a égide de marqueteiros, mascates de bordões e expectativas, sem contato tênue que seja com a realidade. Soluções para todos os problemas sublunares são ventiladas para que o homem comum, o abstrato homem do povo, se veja presa de sua tendência ao compreensível pragmatismo de quem nada sabe de gregos ou romanos, mas cuida de estômagos, de bocas, de choros urgentes.

As eleições são isso mesmo, afinal de contas: festas, festas democráticas, espetáculos circenses que vão de cidade em cidade, de estado em estado, de país em país, com seus palhaços, equilibristas e aberrações; seus prestidigitadores e domadores de feras.

Cinco minutos de atenção à campanha presidencial das grandes democracias servem como um curso intensivo de esvaziamento ético-semântico. As palavras ditas — as palavras lidas no teleprompter, escritas por ghost writer competente — fazem montanhas de eleitores correrem de um lado a outro como títeres que se desconhecem. E as palavras deixam de servir à função precípua de dizer o real, de apontar as coisas pelo nome, numa espécie de esgotamento, como se, de tão repetidas, os sons se desligassem do sentido.

Feito esse truque, é possível dizer qualquer coisa e o contrário de qualquer coisa, usando as mesmas palavras de toda a gente, só que agora dóceis a quaisquer abusos, legendas de quaisquer estelionatos. A política contemporânea é o cemitério da dignidade e das virtudes, espécie de hipnose em escala industrial, de obscurecimento e de opacidade da linguagem. Falar para não ser ouvido. Dizer para não ser compreendido. Tudo é encenação, tudo é ensaio, tudo é máscara: a emoção mais sincera, o improviso mais ousado, a reputação mais ilibada.

Políticos não são reis, nem são filósofos, como queria Platão. Políticos são amontoados de frases.

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(“Do vocabulário político”. Publicado em Saudades dos cigarros que nunca fumarei, Record, 2017, com o título: “Escravos de Jó”)

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