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Chávez, referendo e democracia
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Jorge Silva/Reuters

Hugo Chávez ganhou o direito de ser candidato à presidência da Venezuela indefinidamente. Com 54,36% dos votos, o povo venezuelano optou ontem pelo fim do limite de mandatos para presidente. Outros 45,63% votaram contra. Em 2012, portanto, como ele próprio já anunciou, o presidente estará em campanha por mais seis anos de poder.

Em dezembro de 2007, Chávez já havia perdido esse mesmo referendo. Tentou de novo e agora saiu vitorioso. O que explica essa mudança de posição?

É certo que o povo está sempre à mercê de um demagogo. A popularidade de Chávez depende fortemente do petróleo, mas não apenas disso — o preço do barril, inclusive, já não é o mesmo, o que pode minar bastante seu apoio popular até as próximas eleições. Uma outra explicação pode estar na profunda divisão criada no país. Quem não é chavista, sob a ótica do governo, é “inimigo da pátria”. Corre o risco até mesmo de ser perseguido. Durante a campanha desse referendo, a tática da repressão foi claramente utilizada. O maior alvo foi o movimento estudantil — a base da nova oposição, que substitui a antiga, pré-Chávez, extremamente corrupta e oligárquica. Num ambiente desses, o incentivo para ser a favor do governo é alto.

De acordo com a opinião mais alardeada por quem o defende, e às vezes até por seus críticos, Chávez está melhorando a qualidade de vida da parcela mais carente da população. De fato, a pobreza caiu pela metade nos últimos cinco anos, segundo dados do governo. Mas mesmo esse argumento já foi devidamente analisado. Há uma transferência de renda em curso feita de maneira completamente alienada e sob um custo altíssimo. A Venezuela é uma economia cada vez mais centralizada. Não há qualquer incentivo para investimentos e o resultado óbvio é inflação (a mais alta da América Latina, 32%) e desvalorização da moeda. O nível de produção de petróleo, agora totalmente controlada pela estatal PDVSA, caiu 32% entre 1998 e 2008. A ineficiência da gestão pública é gritante.

Além disso, a ideia de que democracia é exclusivamente a vontade do povo, como parece acreditar o próprio Chávez, não só é falsa como ingênua. Como bem sabe qualquer calouro de Ciências Sociais, democracia não é apenas maioria.

O venezuelano Moises Naim, em sua coluna do El País de ontem (antes, pois, do resultado):

A Venezuela é uma democracia? Sim, se por democracia se entende eleições em que o governo faz uso indiscriminado e abusivo de recursos públicos para influenciar os resultados. Ou se por democracia se entende um sistema no qual, ao perder o referendo no ano anterior sobre a possibilidade de ser reeleito indefinidamente, o presidente Chávez anunciou que iria repetir “a medida o quanto fosse necessário”. Ou um sistema em que o presidente controla diretamente o Parlamento, o Supremo Tribunal, o juíz eleitoral, as Forças Armadas, o Banco Central e a indústria que é a principal geradora de recursos no país.

O dito socialismo do século XXI, que, como diz um colega, está muito mais para fascismo do século XX, ganhou ontem uma sobrevida. Mas o preço dele será cobrado adiante. O povo, como sempre, pagará o pato.

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E já que estamos falando em democracia, um texto de H.L.Mencken sobre o assunto, retirado de seu Livro dos Insultos.

DEMOCRACIA – Últimas Palavras

Um dos méritos da democracia é bastante óbvio: é talvez a mais charmosa forma de governo já criada pelo homem. O motivo não é difícil de descobrir. Ela se baseia em proposições palpavelmente falsas – e o que não é verdade, como todo mundo sabe, é imensamente mais fascinante e satisfatório para a maioria dos homens do que o que é verdadeiro. A verdade tem uma aspereza que os alarma, e um ar de finalidade que entra em choque com o seu incurável romantismo. Quando se vêem nas grandes emergências da vida, voltam-se para aquelas velhas promessas, todas falsas mas deliciosamente reconfortantes – e das quais a campeã é a que diz que os pobres herdarão a terra. Esta promessa está tanto na raiz do sistema religioso reinante no mundo moderno como no sistema político em voga. A democracia lhe dá uma certa aparência de verdade objetiva e demonstrável. O homem comum, funcionando como cidadão, tem a sensação de que é realmente importante para o mundo – de que é ele que administra as coisas. Suas lamúrias contra os patifes e os demagogos dão-lhe uma enorme e misteriosa sensação de poder – o que faz a felicidade de arcebispos, sargentos da polícia e outras sumidades. Da democracia, ele extrai também a convicção de que sabe das coisas, de que suas opiniões são levadas a sério pelos maiorais – o que faz a felicidade dos senadores, das quiromantes e dos jovens intelectuais. Finalmente, dela sai também a consciência de um alto dever triunfantemente cumprido – o que faz a felicidade dos carrascos e dos maridos.

Todas estas formas de felicidade são, naturalmente, ilusórias. Não chegam a durar. O democrata que pula no abismo para bater suas asas e entoar aleluias acaba com o nariz no chão. As sementes deste desastre estão em sua própria estupidez: ele não consegue se livrar daquela ilusão, tão cristã, de que a felicidade é algo que só se consegue tomando a de outro. Mas há sementes também na própria natureza das coisas: uma promessa, afinal, não passa de uma promessa mesmo quando baseada numa revelação divina, mas as probabilidades de que seja cumprida podem ser expressas por uma deprimente fórmula matemática. Aqui, a ironia que jaz sob toda a aspiração humana se revela: a busca da felicidade, como sempre, traz apenas a infelicidade no fim das contas. Mas dizer isto é o mesmo que dizer que o verdadeiro charme de democracia não é para o bico do democrata, e sim para o do espectador. Este espectador, me parece, tem à sua frente um espetáculo de primeira classe. Tenta imaginar alguma mais heroicamente absurda: um desfile de imbecilidades óbvias, ambições grotescas e fraudes sem fim! Mas quem se diverte com a fraude? A fraude da democracia é a mais divertida de todas – mais até, deixando no chinelo, que a fraude da religião. Consulte o seu travesseiro a respeito das invenções democráticas mais características. Ou dos típicos profetas democráticos. Se você não pegar no sono imediatamente por falta de respostas, também não achará graça no dia do Juízo Final, quando os presbiterianos pularão do túmulo como pontos de um ovo, asas brotarão em suas omoplatas e eles adejarão rumo ao espaço interestelar, piando de alegria.

Tenho falado até aqui da possibilidade da democracia ser, talvez, uma doença que conheça suas limitações, como o sarampo. Mas é mais do que isto: ela devora a si mesma. Não se consegue observá-la objetivamente sem se impressionar com sua curiosa desconfiança em si própria – sua tendência inextrincável a abandonar sua própria filosofia ao menor sinal de tensão. Não preciso lembrar o que acontece invariavelmente nos Estados democráticos quando se ameaça a segurança nacional. Todos o grandes tribunos da democracia, em tais ocasiões, respiram fundo e convertem-se instantaneamente em déspotas de uma ferocidade quase fabulosa. E nem este processo se limita aos tempos de alarme e terror: continua dia após dia. A democracia parece sempre a ponto de matar aquilo que teoricamente ama. Todos os seus axiomas se resolvem em trovejantes paradoxos, muito reduzidos a contradições flagrantes em seus termos. Dizem eles: “O povo é competente para nos guiar” – desde que possamos policiá-lo rigorosamente. “Não são os homens que nos governam, mas as leis” – mas são homens sentados em banquinhos que, no fim das contas, decidem o que á lei é ou o que deve ser. “A função mais alta do cidadão é servir ao Estado”—mas a primeira constatação que lhe ocorre, quando tenta cumprir esta função, é a de sua desonra e falta de habilidade. Esta constatação costuma ter suas razões? Então a farsa fica apenas ainda mais gloriosa.

Confesso que, de minha parte, acho-a uma delícia. Adoro imensamente a democracia. Ela é incomparavelmente idiota e, por isto, tão divertida. Ela não exalta os parvos, os covardes, os oportunistas, os pilantras e os blefes? Sim, mas a tortura de vê-los subir na vida é compensada pela alegria de vê-los cair do galho. A democracia não é perdulária, extravagante e desonesta? É, como qualquer outra forma de governo: todas são inimigas dos homens decentes. Não são os velhacos que a dirigem? Sim, mas temos suportado esta velhacaria desde 1776 e continuamos sobrevivendo. A longo prazo, pode ser que a velhacaria seja uma necessidade inerradicável de qualquer governo e até da própria civilização – ou que, no fundo, a civilização não passa de um colossal calote. Não sei. Só sei que, quando os chupa-sangues estão se dando bem, o espetáculo fica hilariante. Mas talvez eu seja um homem malicioso: quando se trata de chupa-sangues, minha simpatia por eles tende a ser tímida. O que me intriga é como um homem que é a favor deles e se sente como eles pode acreditar em democracia, e até se compadece que os vê expostos como um bando de sacanas. Como um homem que é sinceramente democrata pode ser democrata?

H.L.Mencken (1926)

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