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O Rubens, sempre com boas dicas de leitura lá no Blogossauro, comentou no post anterior a idéia do filósofo francês Bernard-Henry Lévy de que os Estados Unidos, nos últimos três séculos, foram fortemente marcados por políticas progressistas. Não conheço o trabalho de BHL a fundo, de modo que minha autoridade pra falar dele é quase nula. Sei que escreveu American Vertigo, livro em que refaz os passos de Tocqueville nos EUA. Fora uma ou outra entrevista, não li nada dele. Reforçando, pois: estou andando em terreno movediço aqui.

O comentário do Rubens foi uma reação à matéria da Newsweek dessa semana em que citei no post. Nela, o editor Jon Meacham defende que os EUA continuarão um país de centro ou centro direita mesmo num governo Obama. O argumento de Meacham é parcialmente quantitativo. Das últimas dez eleições, os republicanos venceram sete. Segundo pesquisa da revista, 40% dos americanos se declaram conservadores, enquanto apenas 20% se dizem liberais. A outra parte do argumento é em referência ao que de resto existe por aí. Se falarmos da perspectiva de um, digamos, Olavo de Carvalho, parece claro que a América ruma à esquerda a todo vapor. Mas Meacham toma como base para comparação um exemplo bem menos idealista: a Europa. Para ele, se comparado ao europeu, o modelo de bem-estar social americano ainda é e continuará sendo conservador. Como li certa vez, e não me recordo o autor da frase, se o mundo se tornasse comunista, os EUA seriam “apenas” dominados pela esquerda estatizante.

Andei dando uma fuçada no glorioso google pra saber mais sobre o que pensa BHL. Segue um trecho de uma entrevista em que ele defende a posição apresentada pelo Rubens, após o entrevistador mencionar o debate sobre a identidade americana gerado pela guerra do Iraque (grifo meu):

People seem to be completely taken aback by Bush. Why? Before Bush there was Nixon. And before that there was segregation, the Ku Klux Klan. And all that didn’t stop American democracy from thriving, progressing and developing. And where are we today? People act as if America was going through a huge, irreversible shift to the right. But if you look at the last fifty years, you’ll see that today America has progressed a lot. Bush’s two victories, the triumph of the creationists and the religious fundamentalists is nothing compared with the – victorious! – battle for civil equality, for the equality between men and women, and the right to abortion. We’ve seen a democratic revolution the likes of which has happened nowhere else on earth. Compared with all that, the current shift to the right seems much more like the last shudder of a beast that knows it’s doomed.

Mais, de um outro artigo:

He (Levy) then proceeded to explain what he thought of the left, what his definition of ‘the left’ was: “The real dream of equality, which fed the battle, for example, for the civil rights, Martin Luther King and so on, and the battle for individual freedom. Those who ask to choose between the two — if you have freedom you do not have equality, if you have equality, you do not have freedom — for me, they are not leftist. This is a good definition of the left.

Poderíamos travar aqui uma longa discussão sobre o significado de ser conservador ou progressista. O conceito de Lévy me parece capcioso. Houve, sim, conservadores contrários ao movimento dos direitos civis na década de 1960. William Buckley e sua National Review foram no mínimo omissos a esse respeito. O grande historiador conservador Jacques Barzun, por sua vez, considera a conquista dos direitos civis a última grande transformação não-decadente da cultura Ocidental. O argumento mais conhecido em favor dos conservadores é de que eles gostariam de ver essas mudanças ocorrerem no âmbito privado, sem a mão do governo – e por isso teriam votado contra o Civil Rights Act de 1964. Falo tudo isso porque Lévy, além de ignorar a grande relevância do mercado no desenvolvimento da democracia nos EUA ou da própria vitória do capitalismo sobre o socialismo, ao generalizar sua definição de progressista, sugere uma identificação da esquerda com tudo que é bom e da direita com o que é ruim (com Bush, por exemplo). Sem deliberadabente restringir o conceito, ele torna-o sem sentido prático: qualquer pessoa sã seria a favor de liberdade e igualdade ao mesmo tempo, caso isso fosse possível. Além disso, muitos conservadores clássicos vêem a administração Bush não como a “verdadeira agenda da direita”, porque seria fundamentalista e ideológica demais. Alguns inclusive a consideram uma aberração.

Outro dia, estava assitindo na web uma palestra do Harvey Mansfield em que ele falava do dilema do conservadorismo. Ele questionava: “go back or go slow?”. É uma pergunta central porque, caso opte-se pelo segundo, se deduz automaticamente que a sociedade, em algum momento futuro, irá adotar medidas que vão alterar o status quo (ou seja, atitudes progressistas). Falando sobre essa palestra, James Poulos, editor do ótimo Culture11, diz:

Closely following Tocqueville, Mansfield set up a dilemma for conservatism: go back or go slow? Faced with small-l liberalism — a good political culture, but one with obvious flaws that’s prone to certain excesses — conservatives can, said Mansfield, choose counterrevolutionary change or stalling action. He suggested, in brief, that neither one of these options can be ruled out because liberalism’s excesses are spontaneous and irregular. Conservatives need a way of determining on a rolling basis when it’s right to work to go back and when it’s right to work to go slow. The very practice of conservatism, in other words, requires prudence — in forming the most basic of judgments about how to be conservative and in what way at what time.

Enfim, o ponto era se os EUA são ou não de centro ou centro direita e qual rumo estão tomando. Ao que me parece e pelo que observo, há muita gente nos EUA (certamente mais do que em qualquer outro lugar do planeta) interessada em manter o papel do Estado limitado e em preservar e fortalecer as instituições e os costumes da sociedade. Terem escolhido Clinton ou Bush não necessariamente implica que concordaram integralmente com suas políticas. Quer dizer, Obama certamente será uma guinada à esquerda, mas não tenho tanta certeza que sua escolha é de fato uma mudança no pensamento do americano sobre os valores mais profundos de seu país.

Não custa lembrar. Quem escreveu American Vertigo — que dizem ser um excelente livro — foi BHL, e não eu, rs, e com certeza ele tem muito mais a dizer e conhece muito mais dos EUA do que vosso blogueiro.

(Adendo: No último domingo, o caderno Mais! da Folha publicou uma matéria sobre o livro de correspondências entre Lévy e Michel Houllebecq, recém lançado na França. Houllebecq é um dos meus escritores vivos preferidos, logo fiquei curiosíssimo pra colocar minhas mãos numa cópia – depois que ela for devidamente traduzida para o inglês ou o português. O link da matéria aqui – só para assinantes).

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