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O Médico e o Monstro que não gostava de árvores
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Reprodução
Luci, o médico e Dúccifer, o monstro assassino de árvores

Era uma vez um médico que vivia em uma aldeia chamada Moltopignone, em um país distante, no início do século passado. Doutor Luci, era o nome dele.

Era um médico respeitado, que cuidava das criancinhas e por isso tinha a deferência de grande parte da sociedade daquela época. Mas o que pouca gente sabia é aquele homem tinha um lado sombrio: ele era um serial killer de árvores.

Araucárias, ipês, flaboayants, imbuias e aroeiras: nenhumas espécie resistia a fúria sanguinária de sua motosserra.

Ele agia sempre de forma sorrateira. Da noite para o dia, decepava dezenas de espécies para dar o fato como consumado, sem que ninguém tivesse tempo de perceber ou reclamar.

Quanto tomado pela sede de seiva inocente, ele deixava de ser o respeitado Dr. Luci, o médico, para se transformar em Dúccifer, o monstro assassino de árvores.

Certa vez, mesmo sem ter sido escolhido diretamente pelo povo da aldeia, o doutor Luci passou a governar aquela vila.

A frente do cargo mais importante de Moltopignone durante dois anos e nove meses, ele até que soube controlar bem seu instinto desmatador.

As vezes cortava uma araucária, mas dizia que era para poder construir uma revenda de carros de boi. Ou então destruía uma pracinha, mas justificava que era para abrir um binário para as carroças, dizendo que esse era o modelo que levaria todos a Moltopignone do futuro.

No começo, as pessoas acreditavam no que ele dizia, e até gostavam daquele jeito moderno de governar. Até que um dia, o Dr. Luci, inebriado pela marcha do progresso, resolveu mandar construir uma grande ponte de madeira, onde sequer havia um rio para cruzar.

A obra custou 90 contos de réis (o que era bastante dinheiro naquela época). A população achou a obra cara e ficou desconfiada. Mas lá veio Dr. Luci dizendo que aquilo era mais uma obra do futuro, que surgia um novo símbolo e as pessoas da vila poderiam pintar quadros de óleo sobre tela com a imagem da linda ponte.

Além disso, com a ponte pronta, a população também poderia aproveitar toda a potência de seus cavalos, galopando com suas carroças para chegar até 15 minutos mais cedo em casa.

Alguns incautos até que gostaram da ideia, mas a história não colou. Em uma assembleia, a população decidiu que Dr. Luci não merecia mais ser o líder daquela vila.

E foi aí que o pior aconteceu. Ainda investido dos poderes do cargo, mas sem precisar reprimir seus instintos, Dr. Luci passou a governar como Dúccifer.

Faltando poucos dias para deixar o cargo, ele cortou, de uma só vez, cerca de 60 árvores em uma região da vila que tinha a palavra “jardim” no nome. Foi uma verdadeira chacina, que deixou a população triste e a vila mais feia.

Depois disso, nunca mais ninguém ouvir falar nem em Dúccifer, nem no Dr. Luci. Dizem que, depois de deixar o posto, ele conseguiu ser nomeado para um cargo de segundo escalão no governo da província da Quinta Comarca; o novo trabalho, garantem, nada tinha a ver com a saúde das criancinhas, e sim com cortar árvores para instalar postes de luz.

Passado alguns séculos, até hoje, sempre que é encontrado um tronco estendido no chão, há quem diga que aquilo é obra de Dúccifer, o monstro que não gostava de árvores.

Aviso: “Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações terá sido mera coincidência”

Reprodução/Google Maps
“Túnel verde” na rua Marechal Cardoso Júnior virou registro histórico

Esta fábula que encontrei na internet me faz lembrar de algo parecido que acaba de ocorrer no meu bairro. Como se fosse obra do Dúccifer da estorieta, cerca de 60 árvores que margeavam as ruas Marechal Cardoso Junior e Ministro Gabriel Passos, no bairro Jardim das Américas, em Curitiba, foram cortadas da noite para o dia no último fim de semana.

Árvores plantadas há duas ou três décadas, pelos pioneiros do bairro, foram derrubadas, uma a uma. E as estacas brancas fixadas nas laterais denunciam: a rua, que já comporta fluxo de carros nos dois sentidos, será alargada para receber ainda mais carros. Tudo isso ali, bem próximo ao malfadado viaduto estaiado, em ruas próximas a Avenida Comendador Franco (das Torres) e a Rua Coronel Francisco H. dos Santos.

Alexandre Costa Nascimento/Ir e Vir de Bike
As árvores que saiam do caminho: o progresso precisa passar. Precisa mesmo?

Para quem não se lembra, há menos de uma década a avenida Francisco H. dos Santos era de pista única. Ao lado, havia uma ampla área verde, com ciclovias e árvores, em uma espécie de parque linear que dava um certo charme ao bairro.

A área sucumbiu e deu lugar ao asfalto; tudo para melhorar o fluxo dos veículos e acabar com os congestionamentos. Depois de poucos anos e muitos milhões torrados na obra viária, lá está a mesma avenida, entupida de carros. A solução? Criar uma ponte megalômana de quase R$ 90 milhões — tudo para melhorar o fluxo dos veículos e acabar com os congestionamentos.

Alexandre Costa Nascimento/Ir e Vir de Bike
Cuidado, árvores: Prefeitura trabalhando

O que dói é saber que essa é uma intervenção que não tem volta e que foi imposta goela abaixo da população, sem uma consulta pública, sem ouvir a opinião dos moradores. Morrem as árvores, mas morre também a vida comunitária.

Ruas tranquilas do bairro, onde era possível encontrar a vizinha passeando com o cachorro ou o vizinho levando a filha para pedalar no fim de tarde, deixam de existir. Em breve, tudo o que existirá serão carros apressados, barulho de motores e buzinas, batidas, freadas e um ar pesado e poluído de dióxido de carbono.

Aquela sombra refrescante da copas das árvores, que formavam um túnel verde, vão se transformando em uma fotografia embolorada na memória; quase uma lenda para ser contada para os filhos, que só aprenderão a jogar bola no PlayStation e a conversar com os amiguinhos, que moram do outro lado da rua, pelo Skype.

ERRATA: ao contrário do informado anteriormente, foram 60 árvores cortadas nas ruas do bairro, e não 40. O texto já foi corrigido.

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