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O oficial nazista Adolf Eichmann durante seu julgamento em Israel, em 1961.
O oficial nazista Adolf Eichmann durante seu julgamento em Israel, em 1961.| Foto: National Photo Collection of Israel/Domínio público

1. O caso Adolf Eichmann está de volta. Uma série documental israelense partilhou alguns áudios do oficial nazista responsável pela deportação dos judeus para os campos de extermínio. São de arrepiar. “Se tivéssemos matado 10,3 milhões de judeus”, afirma Eichmann, “eu diria com satisfação: bom, destruímos um inimigo”. Mas o melhor momento acontece quando Eichmann mata uma mosca e, com cinismo, comenta que o inseto tinha uma “natureza judaica”.

As afirmações de Eichmann, ao contrário do que a imprensa afirma, não são uma novidade. A filósofa Bettina Stangneth já tinha revelado a verdadeira cabeça do personagem no livro Eichmann Before Jerusalem: The Unexamined Life of a Mass Murderer.

Mesmo sabendo que Eichmann era nazista, uma pessoa não pode deixar de pensar em Hannah Arendt e no seu Eichmann em Jerusalém. Os leitores sabem do que falo: em 1961, Arendt viajou para Israel como repórter da New Yorker para o julgamento de Eichmann. E apenas encontrou um homem de uma mediocridade imensa, destituído de pensamento, consciência ou consideração pelos outros (“thoughtlessness”, para usar a categoria célebre), que participou nas matanças de forma burocrática.

Eichmann nunca foi esse ser “banal”, incapaz de pensamento ou consciência que pensam. Foi um zeloso nazista, que sempre se orgulhou do seu papel na “solução final” e que nutria pela “raça judaica” um ódio imperturbável

Ponto importante: Arendt nunca afirma que os crimes de Eichmann são banais. Pelo contrário, são monstruosos. A “banalidade do mal” está no próprio Eichmann, que cometeu esses atos sem ser movido por uma maldade especial.

O livro de Arendt nunca me convenceu – e, mais, sempre olhei para ele como um desvio imperdoável das suas reflexões anteriores sobre a natureza do totalitarismo. Os motivos da discórdia são dois. O primeiro, agora óbvio, é que Eichmann nunca foi esse ser “banal”, incapaz de pensamento ou consciência que pensam. Foi um zeloso nazista, que sempre se orgulhou do seu papel na “solução final” e que nutria pela “raça judaica” um ódio imperturbável. Fazendo de conta que Hannah Arendt tinha razão, nem assim Eichmann seria banal. Aliás, arrisco dizer que a alegada banalidade de Eichmann o tornaria ainda mais hediondo. A ausência de pensamento ou consciência demonstra um grau de alienação que está muito acima do vulgar criminoso, que mata por necessidade, ambição ou desvario momentâneo.

Mas a tese de Hannah Arendt também falha à luz dos seus escritos anteriores. Em As Origens do Totalitarismo, a obra-prima da autora, Arendt explicou de forma magistral como as ideologias totalitárias contribuíram para a construção dessa forma nova e radical de política. Na “terra devastada” que a Primeira Guerra Mundial legou aos indivíduos, a ideologia soube resgatá-los desse vazio moral e espiritual, recrutando todas as suas energias na busca da salvação terrena. Adolf Eichmann foi um deles: a sua adesão ao nazismo foi consciente e racional, derrotando assim a tese dos que acreditam que conhecimento é virtude. Nem sempre. Como lembrava George Steiner, é perfeitamente possível ler Goethe ou escutar Mozart ao serão e, no dia seguinte, trabalhar nas câmaras de gás.

2. Um bolsonarista invadiu uma festa de aniversário e matou um militante petista. Eis a ideologia no seu melhor: desumanizando o outro e justificando a matança. Será apenas um aperitivo das eleições que se aproximam? Sei lá. Mas sei que o saudoso Roger Scruton (1944-2020) tinha razão quando afirmava que as democracias só funcionam quando existe uma nação primeiro – não no sentido agressivo e torpe que o nacionalismo defende, mas no sentido histórico, cultural, moral, como partilha de um espaço comum.

Uma vez destruída, a democracia dá um trabalhão danado a recuperar

As nossas sociedades são sociedades de estranhos, dizia Scruton. A única forma de estranhos aceitarem os resultados de uma eleição, sobretudo quando esses resultados são contrários às suas preferências políticas, é pelo reconhecimento de que, apesar das diferenças, o outro faz parte do mesmo barco.

Onde esse espaço não existe – por exemplo, em sociedades divididas por religiões, etnias ou até nacionalidades diferentes e conflituantes –, a democracia deixa de ser aquele sistema de “one man, one vote” e passa a representar “one man, one vote, one time”. Palavras proféticas. Que captam o clima de pré-guerra civil em que o Brasil (e os Estados Unidos, já agora) vai mergulhando com entusiasmo.

Cuidado, Brasil: o problema da democracia é que, uma vez destruída, ela dá um trabalhão danado a recuperar.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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