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Duas ativistas jogam molho de tomate em obra de Van Gogh.
Duas ativistas jogam molho de tomate em obra de Van Gogh.| Foto: Reprodução/Twitter

Está virando moda: depois de sopa de tomate no quadro de Van Gogh, dois ativistas resolveram jogar purê de batata num quadro de Monet. Se eu fosse tão virtuoso como os ativistas, perguntaria se não há aqui insensibilidade social: desperdiçar comida quando existe fome no mundo não é gesto para aplaudir. Mas há aplausos, bem sei, porque a causa é nobre: salvar o planeta do desastre climático. O que é uma sopa ou um purê de batata quando a Terra pode ficar inabitável?

Não contesto. Nem sequer para repetir que estas “performances” repelem mais do que atraem. Prefiro fazer outra pergunta, no melhor espírito utilitarista: se o que está em causa é a sobrevivência da espécie, até onde é legítimo ir para “despertar consciências” (a expressão cafona que o radicalismo pequeno-burguês adora)? Hoje, temos sopa ou purê de batata no vidro de um quadro. Mas não seria mais eficaz destruir mesmo o quadro? Ou dois? Ou três? Vamos um pouco mais longe: para “despertar consciências” não seria melhor aprender com os velhos anarquistas e, sei lá, arrebentar com um museu?

Se o que está em causa é a sobrevivência da espécie, até onde é legítimo ir para “despertar consciências” (a expressão cafona que o radicalismo pequeno-burguês adora)?

Eu sei, eu sei. O leitor, pessoa civilizada, nem contempla tal cenário. Aliás, parece que o estou vendo, abanando a cabeça e murmurando: “Que comparação absurda, Little Couto!” Acontece que eu não faço essa pergunta para você, leitor civilizado. Usando um pouco de imaginação perversa, tento pensar como um verdadeiro fanático pensa. Até onde é possível ir – perdão: até onde é obrigatório ir para salvar o mundo da decadência absoluta?

As preocupações que animam os nossos ativistas não são novas. Séculos atrás, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) formulou as mesmas questões: o que fez a civilização por nós? Sim, deu-nos as artes e as ciências, como os quadros de Van Gogh ou de Monet; mas também trouxe a desigualdade e a corrupção de uma espécie que era pacífica no estado de natureza.

Em nenhum momento Rousseau advoga a violência como forma de redimir o mundo. Nem sequer um retorno lunático ao estado de natureza. Apesar de ser um iluminista crítico, o nosso genebrino era também um produto do iluminismo racionalista, acreditando que os homens, suplantando os seus egoísmos mesquinhos, acabariam todos por desejar o que é racionalmente bom (a famosa “vontade geral”). Os renitentes, esses, seriam “obrigados a ser livres”.

Essa filosofia deu bons frutos: poucos anos depois, no momento mais extremo da Revolução Francesa, um jovem advogado da província, de nome Maximilien de Robespierre (1758-1794), tentou ser fiel à filosofia de Rousseau. A busca da virtude não pode existir sem o terror; e o terror não pode existir sem a virtude, em nome do bom comum, defendia o jacobino. A guilhotina era a conclusão lógica desse pensamento nobre.

Foi um casamento perfeito, que rapidamente deixou metástases. Pouco depois de Robespierre experimentar da sua própria terapia, o revolucionário Babeuf (1760-1797), pela boca do advogado Buonarroti, continuou a tradição: “nenhum meio é criminoso quando se pretende obter um fim sagrado”. Abriam-se assim as jaulas para o terrorismo contemporâneo – de indivíduos ou de Estados.

O anti-humanismo do ambientalismo radical tem todos os condimentos para conquistar os eternos discípulos da brutalidade

Eis o meu ponto: quando o fim é sagrado, não pode haver compromissos. Não pode haver um diálogo racional em busca de soluções possíveis, cientificamente ponderadas e politicamente sustentáveis. É preciso arrasar e começar de novo – ou, na linguagem do ativismo ambientalista mais extremo, parar já!, agora!, nesse preciso momento!, com a queima de combustíveis fósseis, sem acautelar alternativas, e esperar que a sociedade aceite pacificamente um retorno ao paleolítico. E se não aceitar? Ora, ora: se não aceitar, é preciso obrigá-la a aceitar, certo? Para usar a famosa metáfora, não é possível fazer uma omelete perfeita sem partir alguns ovos.

O vandalismo adolescente que hoje ataca nos museus não é dramático, eu sei; e até concedo que as intenções são movidas pela mais genuína ansiedade. Mas perante uma causa tão “sagrada”, não ficaria espantado se outros atores entrassem no jogo, provocando outro tipo de estragos. O anti-humanismo do ambientalismo radical tem todos os condimentos para conquistar os eternos discípulos da brutalidade.

Quem queima livros queima gente, já dizia o poeta. É uma questão de tempo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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