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Estados de decadência
| Foto: TravelCoffeeBook/Pixabay

1. Puxo pela cabeça. Desisto. Não me lembro da última vez que li uma crítica literária severa. Em Portugal e no Brasil, essas raridades já não se encontram nos jornais: tudo é genial, ou quase genial. Na imprensa francesa, inglesa ou americana, há mais variedade; e, de vez em quando, alguém ainda usa o machado. Mas os gênios, e não os medíocres, são a maioria, o que não deixa de ser uma contradição com aquilo que sabemos ou intuímos sobre a genialidade (e a mediocridade). Não deveria ser ao contrário? Uma abundância de medíocres e uma escassez de verdadeiros talentos?

Não é um exclusivo dos livros. Tempos atrás, Lloyd Evans, o crítico de teatro da Spectator, indignava-se justamente por já não haver vaias no teatro. Durante toda a sua história, desde a Grécia Antiga, o público sempre castigou as más peças ou os maus atores com assobios e outras sonoridades. Hoje, qualquer peça e representação são recebidas com aplausos festivos. E, quando isso não acontece, é por razões extrateatrais.

Um exemplo recente oferecido pelo crítico: no musical Cinderela, de Andrew Lloyd Webber, o público protestou. Não pela qualidade da obra, o que seria natural (duplamente natural, aliás, se tratando de Lloyd Webber). A causa da indignação foi uma carta do próprio criador, lida na última noite, em que Lloyd Webber se referia a Cinderela como “um erro dispendioso”. Eis o estado a que se chegou: nem ao autor é permitido um gesto de autocrítica. Como explicar esse clima enjoativo de elogios?

Desde a Grécia Antiga, o público sempre castigou as más peças ou os maus atores com assobios e outras sonoridades. Hoje, qualquer peça e representação são recebidas com aplausos festivos

Cabeças otimistas dirão que as letras e as artes nunca estiveram tão bem, com dezenas de obras-primas todas as semanas. Cabeças humanistas dirão que as críticas implacáveis fazem parte de um passado primitivo, em que o gosto de ver sangue era maior do que a vontade de informar ou ilustrar. Eu prefiro as cabeças realistas, para quem a generosidade crítica se explica pela ignorância de quem não sabe “discriminar”.

Eu sei, eu sei: discriminar é palavra feia. Na linguagem comum, significa usar do preconceito para tratar mal quem não merece esse tratamento. Acontece que a discriminação, entendida como capacidade de separar a excelência da mediania e do lixo, é um processo vital para qualquer cultura que se preze. Por mais simpáticas que sejam as críticas simpáticas, os leitores e os autores precisam de críticas antipáticas. Nem que seja para confrontar as suas certezas e confortos com um banho de exigência.

Como leitor, meu gosto foi depurado por alguns carrascos estimáveis: H.L. Mencken (arrasou H.G. Wells, mas soube defender Scott Fitzgerald), Gore Vidal (que sempre esteve certo sobre as vulgaridades de Norman Mailer) ou Christopher Hitchens (que fez Gore Vidal provar do seu veneno). E, como autor, agradeço todas as tareias honestas de quem soube furar, com conhecimento de causa, as minhas derivas autocomplacentes. Não digo nomes, até porque tenciono vingar-me um dia com a mesma honestidade, mas eles nem imaginam como afinaram a minha pena.

A bondade crítica que corrompe leitores e autores é a expressão máxima da decadência cultural: uma forma preguiçosa de multiplicar gênios pela incapacidade de reconhecer um talento que seja.

Existiu um segundo crime em Uvalde: a covardia da polícia em socorrer de imediato as crianças, que telefonavam em desespero para o 911 ao verem os seus colegas serem abatidos

2. Semanas atrás, o mundo foi confrontado com dois crimes numa escola de Uvalde, no Texas. Estranhamente, só o primeiro crime parece ter ocupado a atenção dos comentadores. Esse primeiro crime é o mais óbvio: um psicopata de 18 anos entrou no colégio e assassinou 19 crianças e dois adultos. A maioria dos comentários criticou, e bem, a facilidade com que se compram armas de assalto nos Estados Unidos.

Mas existiu um segundo crime: a covardia da polícia em socorrer de imediato as crianças, que telefonavam em desespero para o 911 ao verem os seus colegas serem abatidos. Sabemos agora, pelo chefe do Departamento de Segurança Pública do Texas, que apesar de estarem bem armados e com o equipamento de proteção adequado, os policiais demoraram uma hora e 14 minutos para abrir a porta que dava acesso à câmera de horrores. A porta, ainda por cima, nem sequer estava trancada. Tradução: Salvador Ramos, o criminoso, teve tempo de sobra para matar à vontade.

Bem sei que, segundo o espírito do tempo, não é de bom tom exigir alguma dureza policial. É mais confortável clamar pela abolição da polícia, ou pelo menos pela asfixia financeira dos seus serviços. O resultado é esse aí.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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