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O emir do Catar, Tamim bin Hamad Al Thani (em primeiro plano, à esquerda), e o presidente da Fifa, Gianni Infantino (à direita), na abertura da Copa do Mundo de 2022.
O emir do Catar, Tamim bin Hamad Al Thani (em primeiro plano, à esquerda), e o presidente da Fifa, Gianni Infantino (à direita), na abertura da Copa do Mundo de 2022.| Foto: Rodrigo Jiménez/EFE

1. Uma Copa do Mundo no Catar? Pelos padrões da Fifa, nada de novo. Em 1934, foi na Itália de Mussolini. Em 1978, foi na Argentina da ditadura militar. E, para não irmos tão longe, que dizer da Rússia, em 2018, já depois da ocupação ilegal da Crimeia? O Catar é apenas mais um capítulo na generosidade moral da Fifa. O ditador Kim Jong-un, da Coreia do Norte, talvez possa sonhar com uma final em Pyongyang.

E, para aqueles que acusam o emirado árabe de respeito nulo pelos direitos humanos de mulheres, gays ou migrantes, o presidente da Fifa tem uma mensagem para vocês: calem a boca e não sejam hipócritas. A Europa tem 3 mil anos de barbáries no currículo, razão pela qual não pode dar lições de moral aos outros. Concordo com a primeira parte dessa frase. De fato, a história da civilização ocidental é um cortejo de sangue e horror. Nunca entendi por que motivo há europeus que negam o fato, resumindo a história da família ao seu lado mais solar. Como sempre fui um pessimista inestimável, com uma confiança quase nula na espécie humana, as páginas da barbárie ocidental são, como diria Emil Cioran, um longo e inútil trabalho de verificação.

Quais são as desculpas que o Catar e outras teocracias islâmicas apresentam para nunca aprenderem com os seus fracassos?

Mas existe uma diferença entre ter uma história de barbárie e aprender alguma coisa com os erros. O Ocidente acumula esses dois destinos e talvez seja essa a sua singularidade principal. Como lembrava o filósofo francês Pascal Bruckner, tivemos a Inquisição; mas também tivemos o Iluminismo. Tivemos a escravidão; mas também os movimentos abolicionistas para acabar com a infâmia. Tivemos os totalitarismos políticos; mas também a força da democracia liberal. Para cada horror, houve pelo menos uma tentativa de corrigir o horror. O que permite perguntar: quais são as desculpas que o Catar e outras teocracias islâmicas apresentam para nunca aprenderem com os seus fracassos?

No seu mais recente relatório sobre a escravidão moderna, a ONU sustenta que existem nesse momento 49,6 milhões de escravos no mundo (10 milhões a mais do que há cinco anos). Falamos de escravidão laboral (28 milhões) e casamentos forçados (22 milhões). Em ambos, os Estados árabes levam a Copa. Pois bem: na douta sabedoria do doutor Gianni Infantino, devemos manter um respeitoso silêncio sobre tais práticas porque, bem vistas as coisas, ninguém é inocente. Aplausos. Tenho a certeza de que as vítimas de hoje agradecem ao presidente da Fifa tanta sofisticação multicultural.

2. Os países mais desenvolvidos reconheceram no Egito, na COP27, que têm especiais responsabilidades na crise climática. Por isso, concordaram em estabelecer um fundo de reparação de perdas e danos para ajudar os países mais vulneráveis. Cronologicamente, faz sentido: a Revolução Industrial começou na Inglaterra do século 18 e depressa se expandiu por toda a Europa no século 19, o que significa que o Ocidente começou primeiro a conspurcar o ambiente. Um fundo compensatório que ajude os países mais expostos às fúrias do clima é uma ideia justa, desde que a China, o maior poluidor mundial, também seja chamada a pagar a conta.

Mas, se eu concordo com a medida, concordo menos com a diabolização da Revolução Industrial, que no meio de mil horrores também foi responsável por progressos materiais que não se limitaram ao Ocidente. Com o tempo, a produção massificada de bens resgatou milhões de seres humanos da fome e da pobreza ao mesmo tempo que permitiu os avanços médicos que levaram a longevidade humana a patamares impensáveis para quem viveu antes do século 18. Além disso, é preciso uma ingenuidade épica para acreditar que é possível enfrentar a crise climática sem os instrumentos técnicos e científicos que a industrialização tornou possíveis.

Como sempre, saber história pela metade é uma falsificação grosseira do passado que não ajuda à compreensão do presente. A história é sempre um filme ambíguo, feito de virtudes e vícios. Por maiores que sejam os problemas de hoje, eu não trocaria o mundo que a Revolução Industrial gerou por qualquer fantasia bucólica que só existe na cabeça das crianças.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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