• Carregando...
Protesto contra o passaporte sanitário em Paris, em agosto.
Protesto contra o passaporte sanitário em Paris, em agosto.| Foto: EFE/EPA/Christophe Petit Tesson

Na Europa, parece que é uma regra: onde a direita radical governa, há mais casos de Covid-19 e uma maior resistência à vacina. Estranho? Deveria ser. Nicholas Farrell, autor de uma razoável biografia sobre Benito Mussolini, escrevia há tempos na Spectator que a resistência às medidas sanitárias mandatadas pelos governos é compreensível em libertários. Eles, afinal, nunca confiaram na tutela do Estado e defendem uma versão radical de liberdade individual.

Mas que dizer dos fascistas? Não são eles autoritários? Não deveriam eles obrigar a população a obedecer aos ditames do poder? Como explicar “fascistas libertários”, uma contradição nos termos? O caso é especialmente misterioso quando sabemos que, na Alemanha nazista, a vacinação era compulsória (mas apenas para os alemães; as “raças inferiores” não mereciam esse privilégio).

Entendo as perguntas. Também entendo as respostas: para Farrell, uma mistura de desconfiança diante das farmacêuticas e um certo gosto por medicinas alternativas pode explicar a resistência da direita radical aos progressos da medicina moderna.

Para a direita, a luta contra as vacinas significa a recusa da modernidade

Por mais válidas que sejam essas explicações, desconfio que não sejam suficientes. É preciso escavar mais fundo para achar o espírito da nova direita radical. E não há forma de fazer isso sem falar da velha direita. Esse, pelo menos, é o objetivo de Matthew Rose no livro A World After Liberalism: Philosophers of the Radical Right. Tenho lido a obra de Rose, que procura cartografar os autores canônicos que têm influenciado a nova direita radical em todo o mundo. Esqueça Hayek, Friedman ou Oakeshott. O pessoal tem uma preferência cada vez maior por Oswald Spengler, Julius Evola ou René Guénon.

Engraçado: conheço os três. E nunca esperei que um adulto, ou até um jovem que não seja completamente atrasado, pudesse levar a sério esse trio de charlatães. Engano meu. Esses nomes, a que podemos juntar Alain de Benoist e o imensamente repulsivo Francis Yockey, têm legado à direita radical certos valores perenes. A sensação de declínio irreversível é um deles. Corrijo. Não é declínio, é catástrofe iminente. Já tinha reparado: falamos com um exemplar da espécie e o mundo é percebido como uma luta final entre os justos (eles) e os decadentes.

Além disso, há na nova direita radical um culto da irracionalidade e do tradicionalismo, entendidos como fontes privilegiadas de conhecimento, que obviamente desautoriza a ascendência dos especialistas. Não admira que, nesse abismo mental, a ciência e a técnica sejam vistas em tons conspiratórios, como armadilhas de entidades multinacionais para controlar mentes e corpos.

Existe ainda um traço comum a essa direita que, pessoalmente, não me espanta, mas talvez possa espantar certos leitores apressados: ela não se limita a suspeitar da razão, do iluminismo ou da ciência. Também suspeita do próprio cristianismo, entendido como berço dos valores liberais. Isso, você leu bem: por mais violentas que tenham sido as batalhas entre os poderes temporal e espiritual, como negar que o cristianismo revolucionou a moralidade antiga ao colocar o indivíduo (e a sua consciência) no centro do palco? Noções de autonomia, igualdade ou dignidade da pessoa humana, que os autores liberais secularizaram a partir dos séculos 15 e 16, na verdade nasceram muito antes. Ou o leitor pensa que “direitos naturais” foram inventados pelo senhor John Locke?

A nova direita radical, tal como a antiga, despreza esse patrimônio, talvez por entender que ele constitui um limite ao poder nu e cru. Ou, como escreve Matthew Rose, um dos fenômenos mais desconcertantes da alt-right nos Estados Unidos é a forma como ela condena o cristianismo, e sobretudo o catolicismo, não tolerando o fetichismo pela democracia liberal e pelos direitos humanos das igrejas americanas.

Moral da história? Quando a direita radical marcha contra as vacinas e contra as medidas de confinamento, ela não está preocupada com a liberdade individual, com o futuro da economia ou até com a melhor forma de enfrentar uma pandemia. Essas são preocupações dos libertários, não dos reacionários. Para a direita radical, a luta contra vacinas é apenas a variação de um tema mais vasto: a recusa total da modernidade e dos seus frutos decadentes.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]