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A rainha Elizabeth II, em registro de 2016.
A rainha Elizabeth II, em registro de 2016.| Foto: BigStock Photo

A rainha Elizabeth II morreu. Viva o rei Charles III! E antes que o leitor desmaie de fúria por minhas proclamações monárquicas, fique sabendo: não sou. O princípio republicano ainda me parece útil para governar as nossas sociedades modernas. Há amigos (monárquicos) que não me perdoam a traição. Há amigos (republicanos) que também não: se sou adepto da república, como dar vivas à Casa de Windsor? Só posso responder: olhando ao meu redor. Olhando para o Brasil, que comemorou recentemente os seus 200 anos com mais um espetáculo de fanatismo ideológico e boçalidade institucional.

A palavra “polarização” me parece um eufemismo bondoso. O clima é mesmo de pré-guerra civil – e até a revista Economist desta semana dedica um dos seus editoriais ao assunto. Bolsonaro não é apenas danoso para o Brasil caso vença. Também será caso perca: há uma parte do país que será alimentada com doses regulares de ressentimento e revanchismo (“foi roubo!”), na melhor tradição Trump. E, sabendo que há armas em excesso entre os seus asseclas, é possível imaginar o pior.

A função primeira da coroa é a de se apresentar como fator de união. Elizabeth II foi o único ponto fixo no meio do caos

Eis o ponto: uma democracia só funciona quando existe um elemento pré-político que não oferece contestação. E esse elemento é o sentimento de pertencimento a algo que é anterior a nós e que irá sobreviver a nós. Podemos chamar-lhe “nação” – uma identificação territorial, linguística, cultural, até emocional, que não deve ser confundida com a palavra “nacionalismo”. Como lembrava o saudoso Roger Scruton, eu posso perder uma eleição. Eu até posso desprezar o vencedor. Mas aceito os resultados porque, em linguagem primitiva, fazemos todos parte da mesma tribo. Somos brasileiros, ou portugueses, ou americanos, antes de sermos de direita, de esquerda, de centro ou de nada.

Em sociedades onde o elemento nacional não existe – sociedades onde persistem divisões étnicas ou religiosas inultrapassáveis –, acontece o que estamos habituados a ver na África ou no Oriente Médio. Democracia, por lá, não é apenas “one man, one vote”. Como dizia o mesmo Scruton, é “one man, one vote, one time”.

É aqui que entra Elizabeth II. Ou qualquer monarca na arquitetura da Constituição inglesa. “A nação está dividida em partidos, mas a coroa não é de nenhum partido”, escrevia Walter Bagehot (1826-1877), um dos grandes intérpretes da Constituição. Traduzindo: a coroa está acima das disputas políticas mundanas porque a sua função primeira é a de se apresentar como fator de união, tradição e memória para todos os britânicos.

Sem surpresas, é isso que o povo relembra no momento da morte de Elizabeth. Do aristocrata ao motorista de táxi, todos falam da rainha como um elemento de continuidade no meio do fluxo demencial da vida do país nos últimos 70 anos – do racionamento do pós-Segunda Guerra Mundial ao traumático Brexit. Elizabeth II foi o único ponto fixo no meio do caos. Mas não foi apenas isso: como recorda Brendan O’Neill (um republicano) na revista Spectator, ela soube exercer aquelas virtudes públicas que, no Brasil e não só, estão ausentes da discussão política: dignidade, reserva e desprendimento.

É isso que fica? Não tenho dúvidas. Tempos atrás, lendo um dos mais recentes livros do filósofo Byung-Chul Han (Não Coisas: Transformações do Mundo em que Vivemos), encontrei essa passagem soberba que partilho com o leitor. É sobre um outro assunto –mas é sempre sobre o mesmo assunto.

“A fotografia Boulevard du Temple de Daguerre apresenta de fato uma rua parisiense muito animada. Mas, devido a um tempo de exposição extremamente longo, característico do daguerreótipo, tudo o que se move é levado a desaparecer. Só é visível o que permanece imóvel. O Boulevard du Temple irradia uma paz quase aldeã. Além dos prédios e das árvores, vê-se uma única figura humana, um homem a quem engraxam os sapatos e que, por esse motivo, está parado. Assim, a percepção do longo e lento só reconhece coisas imóveis. Tudo o que se apressa está condenado a desaparecer. O Boulevard du Temple pode interpretar-se como um mundo visto com o olhar divino. Ao seu olhar redentor só aparecem aqueles que permanecem numa imobilidade contemplativa. É o silêncio que redime.”

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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