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Voto em Bolsonaro não se resume ao antipetismo; há muitos que concordam com o tripé “Deus, pátria e família”.
Voto em Bolsonaro não se resume ao antipetismo; há muitos que concordam com o tripé “Deus, pátria e família”.| Foto: EFE

O mundo reage às eleições no Brasil. Eu sorrio. Sorriso pequeno, amarelo, quase envergonhado. Quer um exemplo? Na revista New Statesman, o colunista Jeremy Cliffe lamenta: quem pensava que a pandemia seria a sepultura dos líderes populistas errou feio. Num país onde 700 mil pessoas morreram com o vírus e onde Jair Bolsonaro foi universalmente aclamado como um incompetente na matéria, como explicar que Lula não tenha vencido logo no primeiro turno?

Enfim. Deixemos de lado a questão mais óbvia: se a pandemia mostrou a incompetência dos líderes populistas, as consequências econômicas e sociais da pandemia podem ser um novo bálsamo para esse tipo de lideranças – como, aliás, escrevi em plena peste.

Mas a pergunta de Cliffe reproduz, na perfeição, um velho preconceito progressista que corrói qualquer análise sobre o chamado populismo, no Brasil ou fora. É a ideia de que as eleições são um assunto racionalista, ou seja, dentro dos parâmetros que o próprio progressista estabelece a priori como racionais. O cidadão, meditando profundamente sobre os candidatos, só pode votar como um progressista votaria.

O voto em Bolsonaro não é apenas um voto antipetista (a explicação clássica de 2018). É um voto convicto e cada vez mais crescente daqueles para quem Deus, a pátria e a família são a estrutura ética e política da comunidade

Nenhum estudo sério confirma essas fantasias. Eleições são como um jogo de futebol – questão emocional, passional, às vezes selvática. Você não abandona seu time só porque ele perdeu alguns jogos.

Há razões que a razão progressista desconhece, eis o ponto. Creio que foram Roger Eatwell e Matthew Goodwin, no seu National Populism, quem primeiro analisou esse fenômeno: para os progressistas, quem vota em Donald Trump (ou Bolsonaro, acrescento eu) está votando contra algo, não a favor. É sempre um voto negativo, nunca substancial. Um voto de protesto – contra o sistema, a corrupção etc. – porque ninguém, em são juízo, pode sustentar posições conservadoras ou reacionárias (não são a mesma coisa) de forma honesta e autêntica.

Uma vez mais, nenhum estudo sério confirma essas novas fantasias. No caso de Trump, os eleitores escolheram o Donald em 2016 porque se reviram nos valores que ele dizia professar. Os eleitores queriam mesmo menos imigração, fronteiras mais seguras, mais policiamento nas ruas etc. Como relembram Eatwell e Goodwin, oito em cada dez eleitores de Trump concordavam com a construção do famoso muro no México (que Joe Biden continua a construir no Arizona, só para lembrar aos distraídos).

O Brasil não é exceção. O voto em Bolsonaro não é apenas um voto antipetista (a explicação clássica de 2018). É um voto convicto e cada vez mais crescente daqueles para quem Deus, a pátria e a família são a estrutura ética e política da comunidade.

Moral da história? Vença quem vencer o segundo turno, metade dos brasileiros não vai desaparecer da paisagem com suas crenças e valores. Continuará respirando, falando, discutindo, convencendo. Que fazer? A pergunta não é nova. É até bem velha e remonta aos inícios da democracia liberal: como governar sobre uma diversidade de opiniões e concepções de vida, algumas bem radicais e insalubres, de forma a manter uma república livre?

Vença quem vencer o segundo turno, uma parte dos brasileiros não vai desaparecer

James Madison, que se ocupou do assunto no Federalista, deu duas hipóteses: é possível tentar remover as causas das facções; ou, então, controlar os seus efeitos. Remover as causas das facções significa destruir a liberdade de opinião e de crença – ou, pior, obrigar todo mundo a pensar da mesma forma. Dois caminhos que terminam na tirania. Melhor controlar os efeitos, aceitando essa diversidade como parte do jogo e protegendo as instituições democráticas de qualquer assalto majoritário – no Legislativo, no Judiciário, mas também na mídia, na universidade, na sociedade civil e até na casa de cada um.

Em teoria, a trilogia “Deus, pátria e família” não é problemática se não tentar esmagar todas as alternativas possíveis que convivem sob o mesmo teto constitucional. Na prática, desconfie sempre de um político que diz o contrário: nenhuma democracia resiste quando uma metade tenta impor à outra metade como ela deve pensar e viver.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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