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Donald Trump, ex-presidente dos EUA, acena a pedestres ao deixar a Trump Tower, em Nova York, 29 de junho.
Donald Trump, ex-presidente dos EUA, acena a pedestres ao deixar a Trump Tower, em Nova York, 29 de junho.| Foto: EFE/EPA/Justin Lane

Houve um tempo em que as pessoas que desconfiavam das vacinas estavam nos asilos psiquiátricos. Minto. Algumas viviam entre nós, comiam com a gente e gostavam de partilhar as suas descobertas “científicas” sobre o assunto, depois de um doutorado instantâneo na internet. As vacinas eram, consoante os gostos, uma criação de extraterrestres – ou, em alternativa, um complô comunista para castrar os homens e arruinar a fertilidade das mulheres. Havia contradições, claro: como era possível ter mulheres estéreis e, ao mesmo tempo, filhos autistas por causa das vacinas? Pormenores. A sensibilidade “científica” dos antivacinas lidava bem com contradições.

Uma pessoa ria, chorava, ficava indiferente a essa loucura. Mas uma pergunta democrática pairava sobre as nossas cabeças assustadas: e se essa gente toda começa a ser eleitoralmente relevante?

Nos Estados Unidos, já é. Leio artigo de Daniel Gros no Project Syndicate com números delirantes. Só metade da população americana está vacinada – e a “imunidade de grupo” muito dificilmente será atingida com esse ceticismo. Mas o interessante é ver a lealdade ideológica dos americanos em matéria vacinal. Entre os republicanos, 54% tomaram a vacina. Entre os democratas, 86% Em regra, os condados que votaram Trump estão dez pontos abaixo das regiões que votaram Biden. O que explica essa diferença?

Na política contemporânea, o político é uma marionete do povo (e não o contrário)

Para usar uma categoria científica altamente sofisticada, eu diria que é a estupidez. Daniel Gros acrescenta: uma desconfiança sobre a ciência que começa nas teorias evolucionistas e termina nas vacinas. Quem não acredita em Darwin também não vai acreditar na Pfizer.

Mas a importância do artigo de Gros não está apenas nesses números. Está na hipótese apresentada de que as lideranças populistas não são propriamente lideranças. Elas limitam-se a recolher e a amplificar o que as massas pensam e desejam. É uma boa hipótese, apesar de terrivelmente antidemocrática.

Explico: quando se fala de populismo, a nossa atenção recai sempre sobre os políticos que “exploram” as massas rumo ao abismo. O que significa que as massas são inocentes; a culpa é sempre dos demagogos. O caso das vacinas é um exemplo: se os republicanos não fossem seres cavernícolas, os eleitores não iriam para a caverna com eles. Nessa visão vitimária, nunca se admite que os cavernícolas são os eleitores; e que os republicanos de agora são meros oportunistas que se limitam a seguir a estupidez das massas por interesse eleitoral.

Como é evidente, essas hipóteses não seriam estranhas para nossos antepassados. Falo sobretudo de autores liberais clássicos, como Tocqueville ou John Stuart Mill, que apreciavam as virtudes da democracia mas temiam os vícios do “demos”. De tal forma que, no caso de Stuart Mill, esse grande defensor da liberdade e do progresso, o direito ao sufrágio não deveria ser concedido a ignorantes. Antes de votar, é preciso estudar, acrescentava Mill. Caso contrário, a sociedade ficaria refém de uma maioria de brutos.

Esses temores foram confirmados no século 20, quando as massas se entregaram a salvadores ocasionais, que no essencial mimetizavam as sujidades mentais do eleitorado (antissemitismo, revanchismo etc.). E continua na política contemporânea: anos atrás, um marqueteiro português dizia-me que as ideologias já acabaram. Hoje, antes de o político abrir a boca para apresentar as suas ideias, é preciso saber primeiro quais são as ideias dos eleitores. E repeti-las sempre, incessantemente, como se fossem uma originalidade. O candidato, no fundo, é uma marionete do povo (e não o contrário). E a prova final de excelência política só acontece quando o eleitorado se identifica com o líder, sem perceber que o líder é um plagiário.

Como sair desta perversidade democrática? Descanse, leitor: ainda acho que a democracia representativa é o menos mau dos regimes, sobretudo quando existe um mínimo de educação cívica e moral. Além disso, as preocupações populares são o primeiro passo, mas nunca o último, de qualquer governação responsável.

Mas convém não abusar do romantismo democrático: para haver um parasita, é preciso um hospedeiro.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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