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Ethan Hawke e Julie Delpy em cena de “Antes do Amanhecer”.
Ethan Hawke e Julie Delpy em cena de “Antes do Amanhecer”.| Foto: Divulgação

Será que a geração X vai salvar o mundo? Falo da minha geração, claro, nascida entre 1965 e 1980. A colunista Hephzibah Anderson, na Prospect britânica, acredita que sim.

Nas guerras geracionais, ouvimos falar dos baby boomers – que tiveram todos os privilégios – e dos millennials, que exigem todos os privilégios. Mas esquecida, ignorada, desprezada, está a geração X de que falava Douglas Coupland quando batizou o movimento no romance Generation X: Tales for an Accelerated Culture (ou “Geração X, histórias de uma cultura acelerada”).

Para Anderson, só os X serão capazes de mediar o conflito entre boomers e millennials. Até porque são os X que alimentam esse conflito: hoje com 40 ou 50 anos, eles dominam a mídia e, com seus artigos incendiários, criam tensões e ressentimentos entre avós e netos. Hora da reconciliação? Pobre Anderson. Reconciliação? Ela sabe pouco sobre a geração X, apesar de se declarar uma membro da tribo.

O narcisismo de toda uma geração pode não ser saudável para a sociedade

Começo pelo básico: Douglas Coupland não inventou a geração X. Coupland apenas se inspirou no trabalho do historiador cultural Paul Fussell, o primeiro a falar de uma “categoria X” na obra Class: A Guide Through the American Status System (“Aula: um guia pelo sistema de status americano”). É um livro notável de 1983 que analisa as diferenças de classe, das mais óbvias às mais sutis, que persistem nos Estados Unidos.

A “categoria X” aparece no final, como aquela que poderá suplantar essas divisões de classe ao ignorá-las completamente. O que define os X é uma vontade de liberdade, um gosto pela individualidade, uma indiferença à opinião dos outros que, por vezes, ganha contornos indelicados. Aliás, a paródia (ou a ironia) é a linguagem natural dos X, sempre dispostos a perder um amigo, mas nunca uma piada. É por isso que os X não têm relação pacífica com pais ou patrões, figuras de autoridade que merecem uma higiênica distância. De resto, Fussell vai aos pormenores e descreve as roupas dos X (despretensiosas e confortáveis), os carros (banais e invariavelmente sujos), o consumo de álcool (generoso) e as conversas (eruditas, verborrágicas e, não raras vezes, ociosas).

Os X são cabeças falantes, nem sempre bem pensantes, para quem o mundo não existe para ser “transformado” ou “reconciliado”. A simples expressão “rumo a um mundo melhor” é suficientemente provinciana para ser levada a sério. Os X não levam nada a sério, incluindo eles próprios. Fenômenos contemporâneos como a “cultura de cancelamento”, as “microagressões” ou a necessidade de “safe spaces” seriam impensáveis no mundo da geração X: o paternalismo desses fenômenos é puro veneno para quem faz da autonomia um valor sagrado.

A primeira vez que li Paul Fussell tive a estranha sensação de me olhar no espelho. Sim, o conceito de “geração” é vago e cientificamente duvidoso. Mas, em poucas linhas, também eu me reconhecia naquela tribo, sem orgulho ou vexame. Certas passagens, aparentemente banais, conquistaram-me de imediato: os X preferem ficar molhados a usar uma gabardine para a chuva, escrevia o autor. E, em matéria financeira, não é a falta de dinheiro que os impede de se comportarem como aristocratas (arruinados). Que imagem! Que verdade! E que distância para as gerações passadas ou futuras!

Os X são os últimos românticos. Como na canção dos Prefab Sprout, eles ainda são capazes de fazer um banquete de uma mesa de migalhas

Essa sensação de reconhecimento sairia reforçada pouco depois, assistindo aos filmes que os X começaram a produzir sobre eles próprios: Vida de Solteiro, de Cameron Crowe; Caindo na Real, de Ben Stiller; e essa obra-prima do diletantismo que dá pelo nome de Slacker, assinada por Richard Linklater. A trilogia que o mesmo Linklater faria mais tarde (Antes do Amanhecer, Antes do Pôr do Sol e Antes da Meia-Noite) revelaria uma dimensão que escapou a Fussell: os X são os últimos românticos. Como na canção dos Prefab Sprout, eles ainda são capazes de fazer um banquete de uma mesa de migalhas.

Moral da história? Sim, mil vezes sim: o narcisismo dos X, o solipsismo que os afeta, pode não ser saudável para uma sociedade. Há causas públicas que merecem atenção – e os X têm um certo déficit de paixão política que às vezes resvala na indiferença e no cinismo. Mas essa indiferença, na dose e no contexto certos, tem um mérito que falta aos millennials e seus seguidores, sobretudo à geração Z nascida no século 21: ela é menos histérica perante as dissonâncias da vida.

Viver e deixar viver é o lema da geração X. Porque um banquete de migalhas pode ser melhor do que um jantar perfeito que nunca chega.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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