• Carregando...
Assinatura do Tratado de Paris, por Benjamin West.
Assinatura do Tratado de Paris, por Benjamin West.| Foto: Wikimedia Commons

A democracia liberal está em regressão. Não sou eu quem o diz. É a Freedom House, e pelo 13.º ano consecutivo. Causas? Várias. Mas uma delas está na divergência crescente entre “democracia” e “liberalismo”. O mito democrático está chegando ao fim.

Essa é a tese que Yascha Mounk apresenta em O Povo Contra a Democracia (Companhia das Letras), talvez o melhor livro que li até o momento sobre o chamado populismo. Resisti bastante, confesso, porque o título enganava.

Erro meu. Mounk não se limita a carpir mágoas contra a fúria iliberal das massas, ou daqueles que as dizem representar. No banco dos réus, também está o “liberalismo não democrático” que desprezou e alienou essas massas. São precisos dois para dançar o tango.

Mas eu falei em mito democrático. E que mito é esse? Basicamente, a ideia de que os destinos da comunidade estão nas mãos do demos, do povo, dos que votam.

Ter democracia sem direitos ou liberalismo sem democracia só pode acabar da mesma forma: em tirania

Na Grécia Antiga, talvez fosse assim, exceto para mulheres, escravos ou estrangeiros. Mas Atenas era uma cidade-Estado, pequena, sem a complexidade das grandes repúblicas. Impossível replicar o modelo na era moderna, por mais que Jean-Jacques Rousseau e seus herdeiros o tenham desejado (e, durante o Terror da Revolução Francesa, praticado; não deu bons resultados).

Quando os “pais fundadores” dos Estados Unidos são obrigados a pensar e a executar o modelo democrático moderno, em nenhum momento tiveram a ilusão de que estavam a imitar a democracia ateniense.

Quando muito, estariam a adotar o modelo republicano de Roma, onde as assembleias populares eram parte do processo político mas nunca a totalidade dele.

Para James Madison, a tirania de um só homem era tão intolerável como a tirania das massas. E a única forma de impedir qualquer um desses extremos de assumir uma posição suprema passava por um governo representativo e por um sistema de checks and balances, capazes de frear quer o absolutismo de um rei, quer o absolutismo das multidões.

A tensão entre “democracia” e “liberalismo” – no fundo, a tensão entre a vontade popular expressa pelo voto e a soberania da lei na proteção das liberdades e dos direitos fundamentais – esteve presente desde o início da democracia moderna.

Pois bem: para Mounk, essa tensão latente virou conflito aberto.

De um lado, existe a sensação crescente e impaciente de que a arquitetura tradicional das democracias liberais já não funciona – e de que é necessário acelerar a "vontade geral" na prossecução de fins políticos, mesmo que isso implique formas mais autoritárias de organização social.

Do outro lado, e nas palavras certeiras de Mounk, “o sistema político se converte no pátio de bilionários ou tecnocratas” e “a tentação de excluir cada vez mais o povo de decisões importantes irá crescer”.

Como resultado desta divergência, o povo tornar-se-á cada vez mais iliberal e as elites ficarão cada vez mais não democráticas.

Perante esse quadro sombrio, a velha pergunta leninista: que fazer?

O autor tem razão quando afirma que “democracia” e “liberalismo”, apesar de conterem naturezas divergentes, conseguiram coexistir por três motivos essenciais: havia dinheiro para distribuir; não havia redes sociais para incendiar; e a tribo ocidental, etnicamente falando, era mais homogênea.

Essa cola desapareceu: os filhos sabem que não terão uma vida tão confortável como os seus pais; a internet mobiliza os descontentamentos com uma força que James Madison nunca conheceu; e as sociedades multiculturais despertam ansiedades nativas que só um cego não vê.

No livro, Mounk tenta responder a cada um desses problemas com proclamações vagas sobre a necessidade de menos desigualdade, mais educação para resistir à imbecilidade cibernauta e um renovado papel para o esquecido Estado-nação. Difícil discordar.

Mas o grande desafio, ao qual Mounk não responde completamente, é o de saber por que motivo a democracia liberal merece ser defendida. É uma discussão metapolítica, ou até ontológica, sobre as virtudes de um regime político que tenta combinar a escolha livre dos cidadãos com a durabilidade de certos direitos ou instituições que estão acima das contingências populares.

No fundo, é preciso voltar ao básico – “se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário” – para lembrar o básico: ter democracia sem direitos ou liberalismo sem democracia só pode acabar da mesma forma. Em tirania.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]