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Encontro de Bolsonaro com Putin, antes da guerra na Ucrânia: comitiva brasileira não tratou apenas de comércio
Encontro de Bolsonaro com Putin, antes da guerra na Ucrânia: comitiva brasileira não tratou apenas de comércio| Foto: EFE/EPA/MIKHAIL KLIMENTYEV/KREMLIN/SPUTNIK

A diplomacia brasileira sinalizou favoravelmente à Rússia em uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU nesta semana. Em paralelo, o Brasil tenta manter o abastecimento de fertilizantes e também comprar de Moscou armas pesadas (como mísseis, sistemas de defesa antiaérea e barcos), além de tecnologia nuclear.

Agindo dessa forma, o Brasil adota postura semelhante à de outros países do bloco Brics, como África do Sul e Índia. Coincidência? É cedo para dizer, mas ao menos na Ucrânia já há uma percepção de que o Brasil está se alinhando a Moscou. Ao menos foi isso que percebi em mais de dois meses de cobertura jornalística em território ucraniano.

Independente de quem torce a favor ou contra isso, quais serão os riscos e as oportunidades, caso o Brasil decida mesmo adotar essa posição? Ou ainda: será que o Brasil está blefando ao sinalizar para a Rússia, com o objetivo de obter mais vantagens em negociações com seus aliados ocidentais tradicionais?

O Brasil sempre foi visto no exterior como um “país pêndulo”. Ou seja, adota uma posição chamada de pragmática, não apoia nenhuma potência automaticamente. Fica em cima do muro até ter certeza sobre qual lado oferecerá mais vantagens.

A fama vem, em parte, da Segunda Guerra Mundial. O Brasil não entrou no conflito essencialmente por discordar do nazismo, mas por ter navios afundados pelos alemães e por uma oferta de recursos dos Estados Unidos para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional.

A postura de pêndulo é possível porque o país não está comprometido com uma rede de alianças internacionais, como ocorre com muitos países ocidentais.

Mas, voltando ao contexto da guerra da Ucrânia. O Itamaraty vem adotando uma posição aparentemente contraditória. De um lado, vem condenando a invasão russa em fóruns como o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral da ONU, e de outro, vem trabalhando para que a Rússia não seja isolada - conforme querem as potências ocidentais. O país se absteve, por exemplo, na votação pela suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos. O Itamaraty diz que isso é uma posição de “equilíbrio” e não de “neutralidade” - seja lá o que isso signifique.

Nesta semana, o Brasil manobrou para esvaziar uma resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU, segundo o colunista do UOL Jamil Chade. A ideia era retirar do texto acusações diretas contra Rússia em relação aos supostos crimes de guerra e impactos do conflito na atual crise mundial de alimentos. O argumento é que, antes de fazer acusações contra a Rússia na promoção da guerra, é necessária uma investigação.

Assim, a ação pode ser interpretada como uma tentativa de abrandar os ânimos e evitar a continuidade da escalada do conflito.

Questionado por Jogos de Guerra sobre a ação de seus diplomatas na 34ª Sessão Especial do Conselho na última quinta-feira (12), o Itamaraty afirmou que “o Brasil apoia um Conselho de Direitos Humanos forte, independente e imparcial”.

“Durante os debates, o Brasil considerou ser necessário realizar, com a brevidade possível, investigações independentes, objetivas e transparentes das alegadas violações de direitos humanos na Ucrânia, com destaque ao papel da Comissão de Inquérito estabelecida pelo Conselho de Direitos Humanos para esse fim, com apoio do Brasil”, afirmou a pasta.

“Durante as negociações, o Brasil propôs sugestões de aperfeiçoamento da linguagem, com o objetivo de zelar pela imparcialidade do Conselho, evitar a polarização excessiva, promover o equilíbrio e preservar os espaços de diálogo necessários à solução negociada do conflito”, disse o Itamaraty por meio de nota.

Mas a ação também pode ser vista como uma tentativa de explorar a oportunidade de apoiar Moscou num momento difícil - com o objetivo de obter vantagens, assim como parecem estar fazendo os outros Brics.

A oportunidade mais evidente é a manutenção da compra de fertilizantes. A Rússia é a fonte de cerca de um quarto dos fertilizantes consumidos pelo agronegócio no Brasil. Moscou já anunciou que limitaria exportações para países “hostis”, mas o Brasil ficou de fora dessa lista e agora recebe não apenas sua cota pré-guerra, mas parte dos insumos que seriam destinados à Europa.

Em tese, o Brasil não precisaria necessariamente comprar seus fertilizantes da Rússia. Os russos abrigam duas das maiores empresas fornecedoras mundiais, mas há ao menos outras oito espalhadas pelos Estados Unidos, Europa, China e Israel.

Pelo fato do fertilizante ser uma commodity, seu preço tende a variar de forma homogênea, independente do fornecedor. Mas substituir fornecedores não é uma tarefa simples e depende de muita negociação. Sem mencionar que a Rússia pode oferecer preços mais competitivos, por estar em uma situação de embargo - ela já vem fazendo isso com o petróleo.

Por ora, a operação de compra de fertilizantes da Rússia não coloca o Brasil sob o risco de sanções ocidentais. Isso porque, embora o Ocidente esteja tentando isolar a Rússia economicamente, há um medo de uma crise mundial de alimentos. Por isso, os Estados Unidos afirmaram que não é proibido comprar fertilizantes da Rússia.

Polêmica da compra de armas

Mas há um ponto muito mais polêmico em jogo do que a questão dos fertilizantes: a compra de armas pesadas da Rússia.

A comitiva do presidente Jair Bolsonaro que visitou a Rússia antes da guerra não tinha características apenas de comércio. Integrantes especializados trataram do interesse brasileiro em comprar foguetes lançadores de satélites e mísseis hipersônicos, sistemas de mísseis teleguiados, baterias de defesa antiaérea e navios de patrulha oceânicos.

Eles demonstraram interesse também em negociar a tecnologia russa de pequenos reatores nucleares, capazes de impulsionar embarcações civis ou gerar energia elétrica em áreas remotas do país.

Algumas dessas tecnologias vêm sendo negadas ao Brasil há anos pelos seus parceiros ocidentais. Mas se a moeda de troca para obtê-las da Rússia for apoio diplomático e comercial, qual é a garantia de que Moscou cumprirá sua parte do acordo?

Só para lembrar, o governo de Vladimir Putin negou até a véspera da guerra que tinha a intenção de invadir a Ucrânia. Hoje, sabe-se que a guerra vinha sendo planejada há anos.

Não interessa aos Estados Unidos que o Brasil tenha tecnologia militar de ponta. Mas isso não faz da Rússia um aliado automático, pois Moscou tampouco tem interesse em compartilhar tecnologia militar sensível.

Ao menos até antes da guerra da Ucrânia, havia uma grande desconfiança da Rússia em relação ao Brasil e vice-versa, segundo o coronel da reserva da Força Aérea Jorge Schwerz. Ele coordenou as negociações para a compra do sistema de defesa antiaérea Pantzir, da Rússia, durante o governo Dilma Rousseff. Hoje é autor do canal especializado em defesa Ao Bom Combate, no YouTube.

“Essa desconfiança vinha da Guerra Fria, o Brasil era visto como um país sob forte influência norte-americana. Havia desconfiança dos dois lados”, afirmou ele. Segundo Schwerz, o temor dos russos era compartilhar a tecnologia com o Brasil e, após uma mudança de governo por aqui, esses segredos serrem repassados para os americanos.

No caso do Pantzir, a negociação não foi concluída por questões orçamentárias, mas a desconfiança provocava grandes atrasos nas negociações e na troca de informações sobre o equipamento.

Porém, de acordo com o coronel, essa era uma realidade pré-guerra da Ucrânia. Na opinião dele, não é possível saber se no atual contexto de isolamento internacional e necessidade de recursos financeiros, a Rússia estaria ou não disposta a vender tecnologia militar avançada.

E há outro ponto a ser considerado: em períodos de paz (no Brasil), a prioridade deve ser para desenvolver e sustentar uma base industrial estratégica para o país, segundo o professor Eduardo Siqueira Brick, pesquisador do Núcleo de Estudos de Defesa, Inovação, Capacitação e Competividade Industrial da Universidade Federal Fluminense (UFFDefesa).

“Isso significa priorizar o desenvolvimento de produtos de defesa nacionais e adquiri-los para as Forças Armadas ao longo do tempo, fazendo atualizações contínuas durante o processo. Aquisições no exterior, somente se forem contribuir para o desenvolvimento dos produtos nacionais, via alguma transferência de tecnologia não dominada pelo país”, afirmou.

Por exemplo: o Brasil tem sistemas de defesa antiaérea muito limitados - que servem para proteger apenas pequenas regiões ou unidades militares.

Se o Brasil comprasse da Rússia o sistema de defesa antiaérea de longo alcance S-300 (que vem sendo usado na guerra da Ucrânia pelos dois lados), sem ter nenhuma pesquisa prévia na área ou empresa capacitada para absorver a nova tecnologia, em poucos anos ele ficaria obsoleto e se tornaria sucata.

“No caso do S-300, como estamos com baixa competência nesse setor, isso só iria consumir recursos sem a desejável transferência ou absorção de tecnologias críticas”, disse Brick. Segundo ele, compras desse tipo só se justificariam na iminência de um conflito, o que não é o caso no Brasil.

“Qualquer aquisição de produto estrangeiro se encaixaria na mesma lógica. Períodos de paz devem ser aproveitados para desenvolver a capacidade industrial e tecnológica própria. Qualquer compra de produtos de defesa no exterior que não contribuam muito para essa capacitação deveria ser evitada. Isso porque o orçamento é limitado e essas compras simplesmente sugam todos os recursos disponíveis”, disse ele.

“É o que aconteceu em muitos casos nos últimos 50 anos. Empresas importantes como Engesa e Mectron faliram, mas o Brasil adquiriu carros de combate usados e mísseis no exterior”, afirmou o professor.

Um caso de sucesso foi o da Força Aérea. O Brasil comprou aviões a jato estrangeiros ao longo de anos, como o Xavante, na década de 70, que foi licenciado por uma empresa italiana e produzido no Brasil. O mesmo aconteceu com o AMX na década de 90. Essas experiências deram subsídio para que a empresa Embraer desenvolvesse sua própria tecnologia, se tornando hoje competitiva no mercado internacional de aviões militares a jato.

Ou seja, não é desejável tratar a compra de armas pesadas como produtos “de prateleira”. Além disso, é preciso que o sistema comprado se adapte aos sistemas já existentes. Em outras palavras, não é aconselhável fazer compras de oportunidade (por causa da situação desfavorável atual da Rússia). É preciso toda uma preparação e estratégia do país que pode demorar décadas para ser concluída.

O Brasil possui, por exemplo, uma pesquisa prévia de mísseis hipersônicos na FAB, chamada 14-X. Esse projeto poderia se beneficiar de um repasse de tecnologia russa. Mas a Rússia é o único país do mundo que tem essa tecnologia em operação - ela foi testada pela primeira vez em batalha na Ucrânia neste ano. Será que Moscou repassaria mesmo esse tipo de tecnologia?

O risco é que o Brasil se queime no cenário diplomático apoiando a Rússia, tendo apenas como garantia uma série de promessas. Não seria melhor, como no caso dos fertilizantes, exigir o envio da tecnologia antes de tentar malabarismos diplomáticos nos fóruns da ONU?

Sem falar no dilema ético de apoiar um país que invadiu um vizinho pacífico e supostamente cometeu crimes de guerra contra civis ao fazer isso - mesmo que a Rússia tenha sido motivada por uma expansão alegadamente predatória da OTAN (aliança militar ocidental) para leste.

Por outro lado, há a hipótese do Brasil estar blefando. O Itamaraty tentou amenizar as críticas à Rússia no Conselho de Direitos Humanos da ONU, órgão que tem importância prática bastante limitada em comparação a outros fóruns. As mudanças sugeridas pelos diplomatas brasileiros nem foram acatadas e o Brasil acabou dando seu voto para um texto final negativo para a Rússia.

Nessa hipótese, a ação diplomática não seria um apoio a Moscou, mas um recado para o Ocidente. Ele diz que o Brasil está aberto a negociar com quem quer que seja, independentemente da ligação com Washington no passado.

Isso poderia fazer os Estados Unidos e seus aliados agirem de forma mais amigável em relação aos assuntos brasileiros. Essa hipótese tem mais a cara do Itamaraty, mas não deixa de ser um jogo perigoso.

Assim, deixo a pergunta: o Brasil está sendo ingênuo ou pragmático? Cabe ao leitor responder.

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