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O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, em evento em Brasília em junho
O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, em evento em Brasília em junho| Foto: EFE/Joédson Alves

O presidente Jair Bolsonaro disse na última semana que o Brasil negocia com a Rússia a compra de diesel barato. Em tese, isso poderia ajudar a reduzir a inflação e aliviar a pressão sobre os preços dos alimentos em um ano eleitoral. Mas será que o desconto russo realmente faria diferença na economia brasileira? E, se fizer, não colocaria o Brasil em uma situação de dependência de Moscou, como ocorreu com a Alemanha e países europeus em relação ao gás?

A coluna Jogos de Guerra conversou com especialistas da área para tentar responder essas perguntas. Mas antes é preciso entender como a questão do diesel ganhou importância no Brasil.

Os preços dos combustíveis vêm subindo mundialmente devido a fatores como a tentativa de transição energética de combustíveis fósseis para fontes renováveis e a retomada econômica pós-pandemia. Por último, veio a tentativa das potências ocidentais de embargar o petróleo russo para conter a invasão na Ucrânia.

O governo brasileiro fixou uma alíquota máxima para a cobrança do ICMS sobre os combustíveis. O preço da gasolina caiu nas bombas, mas o diesel não foi tão afetado, pois já tinha uma alíquota baixa, segundo o economista Luciano Losekann, da Universidade Federal Fluminense.

Em paralelo, a Europa começou a estocar diesel como uma forma de diminuir o impacto da tentativa de embargo dos hidrocarbonetos russos e os Estados Unidos aumentaram o consumo. Tudo isso elevou o preço do diesel no mercado global.

Isso também afetou os preços no mercado brasileiro, pois cerca de 30% do diesel que o país consome vem do exterior - principalmente do Golfo do México e, em alguns casos, do Oriente Médio. O valor do litro subiu quase 60% em um ano, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo.

“Subir o preço do diesel no Brasil é tenebroso para o custo de alimentos, porque a maior parte dos alimentos no país é transportada por caminhões”, afirmou o analista Emanuel Pessoa, doutor em direito econômico pela Universidade de São Paulo.

Desde o início das sanções à Rússia devido à guerra na Ucrânia, Moscou tem vendido petróleo e seus derivados com preços abaixo do mercado para países como Índia e China. A Índia chegou a obter desconto de US$ 30 por barril. A ideia do Brasil é aproveitar a oportunidade gerada pela crise e comprar diesel barato da Rússia.

Mas qual seria o impacto real na economia brasileira?

Não se sabe ainda qual seria o valor do desconto oferecido pelo governo de Vladimir Putin. Por isso, os analistas se dividem sobre a possibilidade da medida ter um impacto significativo na inflação.

Segundo Losekann, o Brasil não poderia simplesmente “virar a chave” e substituir de uma hora para outra todas as importações dos Estados Unidos e de países árabes por diesel russo.

Isso ocorre por causa de contratos e de questões técnicas relacionadas a especificações do produto. Segundo ele, o mercado de diesel é menos líquido, ou versátil, que o mercado de petróleo cru.

Além disso, pode haver dificuldades de se encontrar intermediários para viabilizar as transações, pois muitas empresas que atuam no processo de importação têm medo de serem sancionadas pelos Estados Unidos.

Outra possibilidade é que o desconto se perca por causa dos altos custos de se transportar diesel do outro lado do mundo. Ou ainda que a economia seja absorvida pelas redes de distribuição antes de chegar às bombas.

Por isso, na opinião de Losekann, o cenário mais provável é que o Brasil comece a importar diesel da Rússia, porém, em um volume limitado. Assim, é pouco provável que a manobra gere um impacto muito significativo na inflação.

Já Pessoa afirmou que só uma parte do desconto russo deve se perder pelo caminho. Dependendo do preço estabelecido pelo governo de Vladimir Putin, a redução de valor pode chegar, sim, ao bolso do consumidor.

“O desconto não se perde 100% no caminho. Se o Brasil comprou combustível 20% mais barato, não quer dizer que vai ser 20% mais barato na bomba, mas alguma coisa fica”, disse ele.

Já na opinião de Armando Cavanha, consultor especializado em óleo e gás da PUC-Rio, é provável que o diesel russo chegue ao Brasil com um preço similar ao que é praticado pela Petrobras - que tem adotado preços um pouco mais baixos que os do mercado internacional. O lado positivo seria a diversificação das fontes de importação.

Refinarias

Mas não podemos descartar totalmente a hipótese de que o desconto oferecido pela Rússia seja baseado em interesses geopolíticos. A barreira dos custos de transporte, em tese, também poderia ser superada com o uso de navios petroleiros russos - não sujeitos às sanções ocidentais.

Se esse for o caso, é concebível que o diesel chegue ao Brasil a um preço muito abaixo do mercado.

Antes de finalizar este texto, debati essa possibilidade com alguns leitores pelo Twitter. Alguns deles trouxeram a seguinte solução: o Brasil poderia se beneficiar do diesel barato da Rússia por um tempo, até possuir mais refinarias e não depender mais da importação do produto.

Segundo Cavanha, essa hipótese é improvável. O Brasil atualmente tenta privatizar parte das 14 refinarias da Petrobras. Dificilmente o país encontraria investidores interessados em construir mais refinarias no Brasil, por causa do processo de transição energética para fontes limpas.

“O processo de refino dá uma margem de lucro pequena em comparação à extração de petróleo. Por isso, as refinarias têm que funcionar por 20 ou 30 anos para compensar o investimento”, afirmou.

Além disso, segundo ele, é saudável que o país importe parte de sua necessidade de diesel. Isso porque, se houver algum problema com a produção nacional, o país já tem fornecedores e corre menos risco de ficar sem o produto.

Dependência energética

Nos anos 1970, a Alemanha decidiu começar a importar gás natural da então União Soviética, atraída por preços convidativos. Na época, a OTAN (aliança militar ocidental) alertou o governo alemão sobre o risco de o país se tornar dependente da energia russa. Na época, Norbert Plesser, o então chefe do departamento de gás do governo alemão, respondeu que o país nunca dependeria da Rússia para prover mais de 10% de sua necessidade de gás.

Além de se beneficiar dos preços convidativos, a Alemanha acreditava na época que aumentar o comércio era a melhor forma de tornar a União Soviética menos autocrática e mais dependente dos bens manufaturados da Europa.

Mas, recentemente, alerta similar sobre a dependência do gás russo foi dado pelo governo do ex-presidente Donald Trump aos alemães.

Contudo, quando a Rússia invadiu a Ucrânia neste ano, 55% da necessidade de gás alemã era suprida pela Rússia.

Sob pressão dos EUA e dos vizinhos europeus, Berlim reduziu para 35% sua dependência do gás russo desde a invasão da Ucrânia. Parte dessa pressão se explica em um conceito de geoestratégia (Heartland) que desperta um temor histórico de Washington: uma possível aliança entre Alemanha e Rússia.

Mas então, guardadas as proporções, qual é a possibilidade do Brasil estar caindo em uma armadilha estratégica similar ao comprar diesel da Rússia?

O Brasil não é uma potência industrial, mas neste momento o embargo ocidental à energia russa tem feito Moscou buscar qualquer tipo de comprador para seus hidrocarbonetos.

Para os especialistas ouvidos pela coluna, essa possibilidade é baixa devido a alguns fatores. Um deles é que, diferente da Alemanha, o Brasil produz petróleo e possui uma matriz energética diversificada.

“O Brasil importa diesel de diversas fontes e, futuramente, quando a guerra acabar e as relações do mundo ocidental com a Rússia se normalizarem, a Rússia deverá voltar a comercializar no preço do mercado internacional”, disse Pessoa.

Além disso, apesar de o Brasil utilizar o modal rodoviário de transportes, a participação do diesel importado é relativamente pequena em relação a outras fontes de energia usadas pelo país.

Não podemos deixar de observar, porém, que não se sabe se as relações de comércio internacional vão algum dia voltar a ser o que eram antes da guerra da Ucrânia. E vale lembrar ainda que a dependência alemã da energia russa também começou de forma praticamente inexpressiva no século passado.

Questão ética

Assumindo a hipótese de que o governo brasileiro consiga negociar um preço vantajoso com Putin e derrube os preços nas bombas, como fica a questão moral?

Segundo Pessoa, as sanções ocidentais à energia russa visavam que a economia do país encolhesse de 12% a 14%. Dessa forma, Moscou teria grande dificuldade para continuar financiando a guerra na Ucrânia e seria obrigada a retirar suas tropas.

Porém, a Rússia conseguiu controlar relativamente sua inflação, países europeus não cortaram totalmente as importações de petróleo e gás russos e nações como China e Índia firmaram parcerias para comprar a energia que deixava de ser exportada ao Ocidente. Isso fez analistas revisarem suas projeções e estimarem uma retração da economia russa para este ano de 7,8%, segundo Pessoa.

O dilema ético está no fato de que, ao comprar diesel russo para se aproveitar da crise, o Brasil estaria colaborando com a Rússia para prolongar a guerra.

“Embora moralmente não se devesse, é muito difícil você justificar deixar o preço do diesel subir, o preço da comida subir, em um país como o Brasil, em que a maioria da população é pobre”, disse Pessoa.

Algum leitor pode lembrar que, quando os Estados Unidos e seus aliados europeus invadiram países como Iraque ou Afeganistão, ninguém tentou aplicar sanções contra eles.

Isso é verdade, mas a questão moral aqui não é de apontar heróis e bandidos, culpados ou inocentes no cenário global. O que está à prova é a capacidade da comunidade internacional de encerrar um conflito por meio da economia e não mandando tropas para o campo de batalha.

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