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Soldados russos fazem a guarda em usina hidrelétrica em Kherson, uma das regiões ucranianas que Moscou pretende anexar
Soldados russos fazem a guarda em usina hidrelétrica em Kherson, uma das regiões ucranianas que Moscou pretende anexar| Foto: EFE/EPA/SERGEI ILNITSKY

A agência de notícias russa TASS revelou na última semana que Moscou pretende anexar ao território russo as regiões ucranianas de Kherson e Zaporizhzhia - seguindo fórmula similar à anexação da Crimeia em 2014.

Isso não só afasta a possibilidade de um cessar-fogo na guerra da Ucrânia (pois o presidente Volodymyr Zelensky já afirmou não concordar em ceder território nacional), como coloca em questão uma norma internacional que havia sido estabelecida após a Segunda Guerra: a de que nenhuma nação usaria a força contra a integridade territorial de outro país.

Essa ideia começou a tomar forma depois que os Estados Unidos deixaram de ambicionar mais território e praticamente se consolidou na Carta das Nações Unidas, após o fim da Segunda Guerra.

Ainda assim, o conflito armado foi utilizado em algumas ocasiões. Por exemplo, quando o Vietnã do Norte tomou o Vietnã do Sul, quando a Argentina tentou tomar da Inglaterra as ilhas Falklands (chamadas pelos argentinos de Malvinas) e nos processos de ocupação e anexação de terras realizados por Israel contra seus vizinhos.

Mas, praticamente desde que o Iraque invadiu o Kwait em 1990, nenhuma nação tentava conquistar outro Estado internacionalmente reconhecido usando a força.

Com o processo de globalização, a comunidade internacional entendeu que não era mais preciso anexar territórios para ter acesso a recursos de vizinhos.

Os Estados mais fortes entenderam que abrir as fronteiras era uma forma de impor suas vontades a outros povos, mas mantendo a estabilidade e evitando conflitos armados. Essa é a lógica de imperialismo na política internacional, segundo o cientista político Marcelo Suano, da consultoria Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais.

“Você pode ter o controle de pessoas desde que você submeta a economia que rege o local onde essas pessoas estão localizadas, sem a necessidade de armas e sem a necessidade de anexação territorial, que é até mais caro”, disse Suano.

Porém, segundo ele, a expansão da OTAN (aliança militar ocidental) para leste, desde a queda da União Soviética, fez com que o presidente Vladimir Putin deixasse de enxergar o cenário sob o prisma da política internacional e passasse a utilizar a visão geoestratégica. Ou seja, passou a pensar nos territórios próximos à Rússia sob uma perspectiva de defesa militar.

E qual é o papel da Crimeia? Por que a Rússia anexou a península em 2014, mas não o fez com a região de Donbas?

A península da Crimeia, que tem bases militares russas em Sevastopol, possui uma importância estratégica elevada por possibilitar o controle do Mar de Azov e de grande parte do Mar Negro. Isso facilita a defesa do território russo e garante a Moscou um “porto quente” - ou seja, que não congela e pode ser usado nos meses de inverno. Desde os tempos soviéticos, ela gozava de certa autonomia política, mas foi transferida à Ucrânia em 1954.

Após a independência da Ucrânia (1991), o país firmou com a Rússia, com os Estados Unidos e com a Grã-Bretanha um acordo no qual abria mão para Moscou de suas armas nucleares dos tempos soviéticos em troca de proteção dos outros signatários e ajuda financeira da Rússia. O mesmo acordo garantiu à Rússia o direito de utilizar parte das bases de Sevastopol e manter tropas lá.

Segundo Suano, após a revolução de 2014 que derrubou um governo pró-Rússia e instalou uma administração pró-Ocidente na Ucrânia, a Rússia teria temido perder o acesso àquela posição estratégica. Por isso, forças russas que partiram de Sevastopol tomaram o Parlamento da Crimeia e instituíram um premiê local pró-Rússia. Depois de um controverso referendo, a península acabou anexada pela Rússia, porém, sem derramamento de sangue.

Cerca de um mês depois, em abril, ainda em represália à revolução ucraniana, rebeldes financiados por Moscou tomaram à força parte das regiões de Donetsk e Luhansk - que formam o Donbas, a área mais industrializada da Ucrânia. Em 2014, segundo Suano, a região não era entendida como tão fundamental para a segurança russa quando a Crimeia, por isso não teria havido anexação.

Mas, antes de iniciar a invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro deste ano, Putin reconheceu Donetsk e Luhansk como repúblicas independentes. Elas hoje formam o principal cenário da guerra na Ucrânia.

Assim, a Rússia deve realizar referendos similares ao de 2014 em Kherson, que fica ao norte da Crimeia, e na área que controla do oblast (região) de Zaporizhzhia, localizada na faixa litorânea a nordeste da península. Essas regiões, já sob o domínio de Moscou, podem ser assim anexadas à Rússia - caso a Ucrânia não seja capaz de articular uma contraofensiva efetiva nos próximos meses com apoio indireto do Ocidente.

Se a anexação ocorrer, a Rússia formará um corredor na costa ucraniana que garantirá o domínio do Mar de Azov e da península da Crimeia. Analistas militares dizem ainda que Moscou pode ir além, dominando todo o Donbas, conquistando a capital de Zaporizhzhia - e eventualmente invadindo Kharkhiv, a segunda maior cidade ucraniana, no nordeste do país, e Odesa e Mykolaiv, os últimos portos ainda nas mãos dos ucranianos.

A ideia geral da Rússia é dominar essa região para dificultar uma eventual invasão de seu território pela OTAN.

Como o Ocidente vai se posicionar?

Uma das linhas de ação discutidas no Ocidente foi tentar tirar a capacidade de veto da Rússia no Conselho de Segurança da ONU ou eventualmente expulsar o país do órgão, a fim de frear as ações de Moscou.

Isso não ocorreu até agora. Mas, segundo Suano, tal ação poderia consolidar a visão geoestratégica da Rússia (prioridade para a defesa e ações armadas) em detrimento da abordagem por meio da política internacional.

Os Estados Unidos e seus aliados europeus também podem pressionar a Ucrânia a ceder território à Rússia em nome de um cessar-fogo. Mas isso pode enfraquecer a norma internacional do não uso da força para resolver questões territoriais – e, assim, encorajar outros países mais fortes a anexar nações vizinhas.

Outra opção que o Ocidente tem na mesa é intensificar a ajuda militar à Ucrânia, com o objetivo de que suas Forças Armadas sejam capazes de expulsar o exército invasor. Em 1990, uma coalizão militar liderada pelos EUA expulsou as forças iraquianas do Kuwait e reforçou a norma estabelecida na Carta da ONU.

O risco agora é que a Rússia não é o Iraque e uma campanha militar prolongada aumenta o risco do conflito na Ucrânia se espalhar pela Europa ou resultar no uso de armas de destruição em massa.

Mas o problema da norma de não anexação virar letra morta é que o mundo pode se tornar mais brutal. Isso porque, em geral, os processos de conquista e manutenção de territórios têm uma série de consequências violentas.

Algumas delas são as mortes de civis ou a transformação da população local em refugiados. Em muitos casos, o invasor tenta diminuir o número de pessoas do território para facilitar seu controle sobre ele.

Outra consequência é a possível criação das chamadas “guerras eternas”, quando a potência invasora leva anos lutando contra movimentos de resistência locais.

Assim, sempre quem sai perdendo é a população civil.

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