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América do Sul com o Brasil em destaque em imagem do globo terrestre
| Foto: Milan Wulf/Pixabay

A intensidade da expansão das ideias iluministas foi imensa. Aquilo que começou a se multiplicar como diálogo de intelectuais na primeira metade do século 18 logo deixou de ser pura especulação. A partir de 1776, momento em que Thomas Jefferson escreveu a Declaração da Independência dos Estados Unidos (assunto da coluna “Da pena ao coração”) as ideias passaram a nortear uma prática experimental, aquela de construir governos e nações com base em leis iluministas.

Como foi possível ver (na coluna “O Pacto Sujo”), até nos Estados Unidos a experimentação inicial mostrou péssimos resultados práticos, obrigando a profundas revisões no caminho. E mesmo onde as ideias de liberdade avançaram muito, a prática mostrou também grandes retrocessos (o que se pode ler em “Liberdade sem mercado”, coluna publicada na semana passada).

Bem ou mal, no entanto, esta passou a ser a experiência histórica da América. No novo continente, a questão central era a de expandir as ideias iluministas frente à realidade crua da escravidão – negação de fato do ideal central da liberdade e dos direitos do indivíduo.

Embora não seja o foco central para este caso, o processo iniciado na América em 1776 acabou tendo seu espelho europeu a partir de 1789, com a Revolução Francesa. Neste caso, a questão central era a ruptura com a milenar ordem tradicional, segundo a qual os homens se dividiam desigualmente como nobres, clérigos ou plebeus.

Numa ou noutra vertente, no entanto, o rápido acúmulo de experiências de mudança tornou-se sinal do tempo em todo o Ocidente: havia uma proposta de futuro se transformando em prática. No centro desta nova prática estava a construção de uma renovada relação entre sociedade e Estado. Para empregar uma formulação brasileira sobre a questão (do deputado estadual paulista Artur Orlando, no início do século 20), a estrutura da mudança tinha a seguinte forma essencial:

“Na Roma dos imperadores o direito público existe fora e acima do indivíduo; este não tem meio legal algum para se colocar ao abrigo contra o que for decidido e ordenado na esfera do direito público. Ora, suponhamos que o imperador, que encarna em si a soberania, ordena em virtude desta soberania tal ato que violará os direitos de um cidadão romano; segundo o direito que rege o Império não há, nem poderia haver, remédio legal, e a soberania representada pelo imperador não poderá encontrar obstáculo. No direito americano, pelo contrário, o cidadão tem direitos imprescritíveis, inalienáveis, que a autoridade não pode infringir, que devem ser salvaguardados, ao mesmo tempo, dos ataques dos particulares e das violências dos poderes públicos. […] Perante os princípios do direito romano, o soberano não encontra obstáculos à sua vontade; perante os princípios do direito americano, os direitos do cidadão estão ao abrigo da ação da soberania, mesmo coletiva”.

Esta era a grande mudança do tempo. O natural, ético, correto do Antigo Regime era obedecer ao rei, ainda que pagando com a vida; o que se construía com a experiência iluminista era o natural, ético e correto de todos obedecerem à lei – governo inclusive.

Certamente não era o tipo de experiência capaz de agradar a um rei absolutista, formado desde a primeira gota de leite materno para fazer o papel de ser excepcional, modelo infinitamente superior ao vassalo ou nobre comum. Mas não faltaram casos para a reflexão deles com a imposição de novos valores – nenhum foi maior que a separação da cabeça mística e do corpo do monarca francês Luís 16 por um golpe da guilhotina revolucionária.

Enquanto foi possível, muitos monarcas europeus foram encontrando as maneiras possíveis de sobreviver no ambiente agora complicado. E a América passou a ser moeda para sobreviver. Os reis ingleses tiveram de engolir a independência dos Estados Unidos; o governo francês livrou-se de posses no Novo Mundo para seguir adiante em sua adaptação.

Na via inversa, os espaços independentes e regidos pelas novas regras começaram a prosperar do outro lado do Atlântico – e os Estados Unidos, vencidas as dificuldades iniciais, passaram a liderar a colheita prática de resultados da nova maneira de organizar a vida de uma nação.

Três décadas passadas da independência inicial, a roda da mudança americana girou novamente, desta vez a partir da Europa. A ascensão de Napoleão Bonaparte como imperador francês criou a explosiva mistura do imperador com poder soberano e a legislação iluminista. Ao longo da primeira década do século 19 a combinação entre vitórias militares francesas e regras diversas para a ação dos governos foi sendo imposta na Europa – até chegar aos rincões.

Até 1807 o regente d. João VI fez o que pôde para evitar conflitos no cenário europeu. Tinha sólidos motivos para isso. O principal parceiro estratégico no continente era a Inglaterra. Já a França, desde a queda do Haiti, vinha se tornando um parceiro comercial cada vez mais importante – até chegar ao ponto de parceiro mais importante, ainda no primeiro lustro do século 19. Assim se compreende que ele tenha feito o possível e o impossível para escolher um lado quando Inglaterra e França entraram em guerra.

A escalada napoleônica foi se refletindo diretamente na América. Todo o império colonial holandês no continente – com exceção do Suriname – desintegrou-se no período. Assim a perda de domínios tornara-se uma hipótese corriqueira, que as metrópoles iam suportando como podiam.

O caso é que Portugal não podia. Já em 1736, d Luís da Cunha havia proposto ao rei a troca da sede da monarquia para o Brasil, com o seguinte argumento: “É mais cômodo e seguro estar onde se tem o que sobeja que onde se espera aquilo de que se carece”.

Em termos econômicos, a metrópole portuguesa era uma instalação dependente de sua possessão americana. Estudos atuais indicam que a economia brasileira era algo como o dobro daquela lusitana (e de um tamanho semelhante à dos Estados Unidos, circa 1800). Por isso a decisão de arriscar o domínio da colônia era muito mais pesado para Lisboa que para qualquer outra nação europeia.

Claro, ainda havia o problema familiar. Desde que, com doze anos de idade, a rainha Carlota Joaquina atacara com um castiçal os cornos do jovem marido que queria consumar o matrimônio avida do casal não era harmoniosa. As relações tornaram-se ainda piores em 1807.

Napoleão Bonaparte estava em guerra com a Espanha, governada pelo pai da rainha, Carlos IV. Já na época era tido como reacionário – isto é, como alguém que não apenas não queria lidar com a questão de seu tempo, mas como alguém cujo projeto de coração era o de fazer o tempo voltar atrás, eliminando da face da terra os governos pela lei.

Carlota Joaquina partilhava esses valores. E por eles se opôs tenazmente à decisão que seu marido estava tramando – o que nos leva à diferença entre um conservador realista e um reacionário.

O notável da escolha de d. João VI não foi tanto a de determinar o lado das potências em guerra que iria apoiar, mas antes o achado da alavanca na qual iria se apoiar.

É mais do que certo que d. João VI tinha muito apreço pela condição de monarca. Daria tudo para manter todas suas prerrogativas. Mas na hora do vamos ver fez exatamente o que seus súditos faziam nos últimos séculos: deixou de lado as tradições e as maravilhas do Reino para ir fazer a América como qualquer plebeu em busca de remédio para suas aflições.

O desembarque no Brasil serviu não apenas para manter a coroa na cabeça como ainda permitiu vender a mercadoria monárquica absolutista como uma novidade sensacional para conter os males da mudança. Não faltaram áulicos para vocalizar a ideia.

José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho perpetrou, ainda em 1808, um livro intitulado nada menos que Análise da Justiça do Comércio de Escravos com a Costa da África. Como diz o título, a obra se destinava a provar que os termos “justiça” e “escravidão” eram sinônimos. O argumento foi construído sobre uma inversão de termos em relação às posições em disputa no momento. O início da dedicatória já diz o quanto:

“Brasileiros! A vós todos dedico esta obra filha do meu trabalho e que só teve em vista vosso bem; obra por cuja causa tenho sido insultado e perseguido pelos ocultos inimigos de vossa Pátria e pelos desumanos e cruéis agentes de Brissot e Robespierre, esses monstros de figura humana que estabeleceram a regra: ‘Pereça antes uma colônia do que um princípio’ – princípio destruidor da ordem social e cujo ensaio foi a florescente colônia de São Domingos abrasada em chamas, nadando em sangue”.

A referência final à revolução do Haiti é a metáfora central do argumento que vem a seguir, procurando mostrar que apenas a tradição do Antigo Regime poderia servir como norte para um governo justo:

“A seita dos anabatistas, no século XVI, e dos “novos filósofos”, do século XVIII, ainda que pareçam diametralmente opostos entre si, contudo têm a mesma base fundamental, a liberdade, a igualdade, a comunhão de bens. Os anabatistas se diziam rígidos observadores das leis de Jesus Cristo, mas não se embaraçavam em examinar o Dogma, só diziam que o verdadeiro cristão deveria ser justo e santo; a religião deles era arbitrária. Os da nova seita filosófica, que se dizem rígidos observadores da lei natural, e que a lei que é contra o direito natural e a humanidade é injusta, e que, em consequência, não deve ser obedecida, não nos dão, contudo, uma definição clara e distinta dessa sua humanidade, desse seu direito natural, nem nos dizem como ele deve ser aplicado: o seu direito é arbitrário e só de nome”.

A chave da argumentação era a transformação da viagem real num milagre capaz de transformar os brasileiros nos últimos seres felizes do planeta:

“Há trinta anos esta seita principiou a espalhar a semente das revoluções para separar colônias de suas metrópoles, principalmente as de Portugal e Espanha. Mas, quando tudo já parecia perdido e sem socorro humano, o Céu em um instante apareceu alegre e risonho; o vento do mar saltou para a terra, o mar sossegou sua fúria; as naus, soltando as velas, salvaram do perigo a Vossa Alteza, aos seus augustos pais, a toda família real, para a felicidade dos fiéis portugueses; a alma de Portugal voltou para animar o corpo, que pérfidas mãos trabalhavam já para separar da cabeça”.

De fato tratava-se de um argumento plausível. Naquele momento em que desabava um tempo milenar, o Brasil era o único espaço na América no qual um monarca encontrava um súdito capaz de argumentar com a esperança de que o pesadelo passasse, que a cabeça mística do rei se mantivesse presa a seu corpo de súditos sem direitos, que a escravidão ainda brilhasse como o sol.

E logo que o livro foi publicado começou o drama da orgulhosa Carlota Joaquina, aquela que considerou a viagem uma fuga: uma das primeiras notícias que recebeu quando desembarcou foi aquela de que seu também orgulhoso pai renunciara ao trono em favor de um irmão de Napoleão Bonaparte. Atrás delas começaram a chegar de todo o continente as notícias da desintegração do império colonial castelhano.

Napoleão foi derrotado em 1815. Neste momento o Brasil se tornara uma ilha do Antigo Regime, cercado por todos os lados de repúblicas governadas por legislações iluministas. E o sonho do paraíso reacionário de Azeredo Coutinho não perdurou integralmente.

O Brasil se fez país melhor que este projeto.

* * *

Por motivos inteiramente pessoais, não terei mais a possibilidade e o prazer do convívio com os leitores da Gazeta do Povo ao longo de um período ainda não determinado.

Gostaria de agradecer imensamente pela oportunidade que tive de dividir pensamentos com todos. Espero que um dia, permitindo as circunstâncias, nosso contato possa ser retomado.

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