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 ELZA FIUZA / ABR
ELZA FIUZA / ABR| Foto:

Uma das virtudes da análise de Manuel Castells em seu livro “Ruptura” vem a ser aquela de descrever a pressão da globalização sobre as instituições por vários ângulos. Um deles é o do Estado nacional. A pressão sobre ele é tão forte que justificaria o grande projeto conservador do mundo de hoje, o de fazer o mundo voltar atrás:

            “Foi sendo gerado um discurso do medo e uma prática política que propõe voltar ao início. Voltar ao Estado como centro de decisão, acima das oligarquias econômicas e das redes globais. Voltar à nação como comunidade cultural da qual são excluídos os que não partilham valores definidos como originários. Voltar à raça, como fronteira aparente do direito ancestral da etnia tida como majoritária. Voltar, também, à família patriarcal como instituição primeira de proteção cotidiana contra o mundo em caos. Voltar a Deus como fundamento. E, nesse processo, reconstruir as instituições de coexistência em torno destes pilares herdados da história e agora ameaçados pela transformação multidimensional de uma economia global, uma sociedade em rede, uma cultura de mestiçagem e uma política de burocracias partidárias” (p. 38).

            O trecho foi escrito para enquadrar a realidade dos Estados Unidos no momento da eleição de Trump – mas, com mínimos detalhes de variação, serviria também para enquadrar qualquer conjuntura europeia, asiática ou da América, ou até mesmo os programas dos candidatos conservadores brasileiros. Com estas brevíssimas observações podemos passar da questão do Estado para aquela da democracia – afinal escolhida por Castells como o centro da crise mundial:

            “A crise dessa velha ordem política está adotando múltiplas formas. A subversão das instituições democráticas por caudilhos narcisistas que se apossam das molas do poder a partir da repugnância das pessoas com a podridão institucional e a injustiça social; a manipulação midiática das esperanças frustradas por encantadores de serpentes; a renovação aparente e transitória da representação política através da cooptação dos projetos de mudança; a consolidação de máfias no poder (…); a pura e simples volta à brutalidade irrestrita do Estado em boa parte do mundo, da Rússia à China, da África colonial aos neofascismos do Leste Europeu e às marés ditatoriais da América Latina” (p. 145).

            Há um curioso contraste no modo de avaliar as dimensões da globalização sobre o projeto de Estado nacional dos conservadores (há outros projetos analisados, que serão considerados em outras ocasiões, mas o dado essencial não se altera) e aquele empregado para avaliar a política. No primeiro caso a ênfase cai sobre a volta à particularidade, a recusa ao todo da globalização, sobre o esforço de construir uma barreira não apenas na fronteira nacional mas sobre os valores que apartariam uma determinada comunidade da pressão exercida pelo todo. Já quando fala da política, o processo é o contrário: juntar num único conjunto da “velha ordem política” as diversas formas de organização do processo político, sejam elas democracias ou estados autoritários.

            Pois bem. É exatamente nestas ênfases opostas que mais senti a falta do diálogo entre Manuel Castells e Ruth Cardoso. O próprio Castells narra em detalhes o ponto central da influência luminosa dela sobre seu trabalho:

            “Um dos momentos mais reveladores de sua capacidade analítica, exercida com a discrição da pesquisadora atenta à observação, foi sua intervenção no seminário sobre globalização e mudança social na América Latina no ano de 2002, em Cochabamba. Num momento da animada discussão nesse seminário fechado de alto nível acadêmico, Ruth sintetizou em uma frase o que estávamos descrevendo sem realmente entender: “O povo desunido jamais será vencido.” Simples, brilhante, profunda.

            “Porque o que ela estava dizendo era que as vias de transformação em nossas sociedades segmentadas e multiculturais não surgem de uma centralidade do sujeito, seja ele qual for, em torno do qual se aglutinam os protestos sociais e os projetos políticos. É a multiplicidade de fontes da mudança social, sua não articulação em aparelhos políticos instrumentais, seu trabalho intersticial nas mentes das pessoas numa série de práticas diversas que vai solapando as raízes da dominação. Porque a dominação tende a se exercer centralmente, no Estado, no capital, no oligopólio da informação, já que resulta de alianças entre interesses e valores dominantes. Ao passo que a resistência é multiforme, cada pessoa, cada grupo, cada fonte de valores alternativos tem suas próprias causas para defender contra a dominação encarnada nos aparelhos da sociedade. Fundir essa diversidade de resistências e projetos alternativos sob uma bandeira comum pode ajudar a ganhar eleições ou tomar o poder. Mas à custa de sacrificar a capacidade transformadora dos movimentos sociais, ações coletivas que procuram, antes, mudar os valores da sociedade do que empoleirar-se nas instituições”.

            Nessa descrição do modo de pensar de Ruth Cardoso que tanto o influenciou, o particular diverso fica na sociedade, o geral da dominação no todo estatal, soma do sistema político com a condução do Estado. Assim pelo menos eu interpreto minha herança pessoal dela. Para meu gosto, é como se ele tivesse esquecido parte da lição que descreve com tanto brilho num texto que escreveu por ocasião dos 80 anos de seu nascimento, e fundido na bandeira comum da “crise da democracia liberal” – ou na generalização da “velha ordem política” – uma série de processos que seriam de outra natureza.

Pode parecer birra pessoal de um desconhecido brasileiro tratando de um grande intelectual mundial. Quem seria eu para falar no modo de pensar de Ruth Cardoso? Bem. Se você leitor me permitir uma oportunidade, contarei um caso na próxima crônica.

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