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Reminiscências de Marx – 1: a biblioteca peregrina
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Fim de ano é boa época para balanço. Mas um balanço de Karl Marx ainda não é algo que se possa fazer com toda tranquilidade, apesar do tempo passado. Neste ano que se encerra completam-se exatos dois séculos de seu nascimento, período suficiente para que o julgamento histórico da imensa maioria de seus contemporâneos já esteja feito há muito tempo.

Pois Marx continua despertando sentimentos vivos, alguns dos quais expressos na última campanha eleitoral. Certas pessoas ainda o tratam como ameaça presente, não como figura de um passado já distante. Também não faltam os que considerem a simples leitura de sua obra um risco grave e uns raros que preguem censura e exclusão dela.

Na via inversa, talvez mais numerosa, existem aqueles que continuam lendo seus textos como se fossem sagrados. Nem mesmo faltam os que façam política empregando símbolos para lá de antigos (é difícil explicar o significado de foice e martelo até mesmo para pessoas de certa idade) relacionados ao inspirador. E existem aqueles que ainda acreditem ser relevantes ideias de mudança pensadas para um século e meio atrás.

Neste ambiente nem sempre é fácil empregar as ideias de Karl Marx para eventualmente iluminar aspectos deste mundo no qual a inteligência artificial está no limiar de introduzir mudanças milenares naquilo que, desde Aristóteles, vem dando sentido ao termo “economia”. Sempre é necessário relativizar antes.

O leitor vai me permitir fazer isso empregando a experiência própria – que não é exatamente conclusiva. Leitor de Marx há meio século, ainda não fui capaz de chegar a nada firme a respeito de sua avaliação. Mas as próprias idas em vindas em torno dos textos que li foram acumulando reminiscências variadas e influências maiores ou menores.

As primeiras incursões vieram ainda na adolescência, em pleno regime militar. Naqueles tempos havia duas atrações fortes para um jovem ler Marx. De um lado a Guerra Fria, e portanto a preocupação de ditadores anticomunistas em demonizar o inimigo. Por isso mesmo se criava atração: quem seria esta figura tão poderosa, capaz de dividir o mundo com suas palavras?

Não era fácil chegar aos textos. A simples posse de livros marxistas era muitas vezes motivo justificado de prisão. Com medo, muitos proprietários colocavam bibliotecas em malas e as lançavam em rios – jogavam fora provas do crime. Não havia livros em quase nenhuma livraria.

Então alguém de minha classe (naquele tempo as últimas séries do ensino básico formavam o curso ginasial) descobriu a Livraria Progresso, que ficava na Rua Vitória – combinação propícia de nomes para algum partidário, já que o estabelecimento pertencia a um militante ou simpatizante do PCB – o “partidão” como se dizia então.
Ali comprei alguns dos poucos títulos disponíveis. Eram edições portuguesas ou da estatal de propaganda ideológica russa em língua portuguesa. Comecei pelos panfletos (“Manifesto do Partido Comunista” e “Salário, preço e lucro”, creio). Escondia os livros no quintal de casa, já que estava fora de questão dizer a meus pais que andava lendo aquilo. Dois ou três amigos de minha classe também tinham ido à livraria, de modo que tinha com quem dividir conversas em segredo – bem maior que aquele no qual circulava material pornográfico entre os moleques.

Havia razões. Quando tinha 15 anos (e a biblioteca já incluía alguns manuais de marxismo) aconteceu a prisão de vários alunos da escola, alguns até mais jovens que eu. Todos acusados de pertencer a “organizações subversivas”. Não é preciso dizer que meus livros foram devidamente empacotados e guardados num terreno baldio que havia perto de casa. O grupo passou a ter outra pauta, a música clássica ouvida nos toca-discos estereofônicos, a novidade da época.

Ficou uma impressão poderosa dessas primeiras leituras. A mais forte era a de que realmente era uma chave não apenas para entender o mundo, mas para transformá-lo revolucionariamente. Que havia um futuro melhor bem ali na frente. Esta avaliação idealizada durou pouco.

As coisas mudaram radicalmente quando Paulo Henrique Cardoso se tornou um grande amigo, ainda no curso colegial. Andávamos com Matinas Suzuki Jr., o flautista Claus Peterson, Raul França Filho e Antônio Cortese. Havia assuntos muito mais importantes na roda – cada um comparecia com a respectiva namorada.

O grupo era interessante o suficiente para atrair a atenção de Gilberto Felisberto Vasconcellos, professor de literatura e doutorando de Sociologia. Com este acréscimo as reuniões de todos em Ibiúna ganhou densidade suficiente para merecer alguma atenção dos pais de Paulo e seus amigos. Pudemos dividir conversas com Boris Fausto, Roberto Schwarz, Bento Prado Junior e Fernando Novaes.

Bem. Esses realmente conheciam Marx. Não aquele dos livros de divulgação, mas de “O Capital”. Sabiam muito bem o tamanho da diferença entre ler panfletos e estudar um clássico. Em poucas horas de conversa minhas certezas revolucionárias se transformaram em minguadíssimos chavões juvenis.

Resolvi mudar para o curso de Ciências Sociais, onde entrei em 1975. Achei pessoas suficientes para tentar reproduzir por conta própria o que a geração anterior tinha feito: formar um grupo para ler “O Capital”. Foram dois ou três anos de reuniões, com resultados pouco claros: quanto mais nos aprofundávamos, menos brilhante parecia o futuro do socialismo científico.

A única vantagem efetiva que eu tinha – e não era pouca – vinha a ser de debater pessoalmente com o pai do Paulo, um tal de Fernando Henrique Cardoso. Ele tinha aquela divertida condescendência de professor com as simplificações de alunos, de modo que ouvia com pachorra minhas tentativas. Depois de um tempo, resolveu começar a me convidar para assistir (com a promessa implícita de não abrir a boca) uma ou outra conferência ou debate de padrão universitário da qual participasse.

E ali o bicho pegou. Uma das frases que ele mais repetia na época calou fundo: “Marx é uma boa referência para estudar o mundo até o século 19, mas daí em diante não serve”. A simples formulação de uma possibilidade de obsolescência foi suficiente para derrubar de novo todas as certezas que vinham sendo acumuladas com o conhecimento em maior profundidade da obra.

Acabei deixando tudo de lado por motivos variados. Primeiro, arranjei um trabalho terrível: fazer a pesquisa e o texto da coleção “História da Música Popular Brasileira”, da Abril Cultural. Era uma verdadeira tortura: uma semana passada com algum grande criador popular, em geral no Rio de Janeiro, outra escrevendo e ouvindo música em São Paulo. Isso obrigava a horrores como jogar sinuca com Paulinho da Viola, ouvir jongo com Mano Décio da Viola, jantar com Caetano Veloso, tomar pinga com Nelson Cavaquinho. Tudo pago e ainda ganhando bem. Como dizia Maria Adelaide do Amaral, que na época editava a coleção “Teatro Vivo”: “Éramos felizes e sabíamos”.

A felicidade teve efeitos. Resolvi me dedicar ao samba como objeto de estudos. Larguei os projetos de revolução – mas não exatamente o marxismo. Gabriel Cohn me apresentou a obra de Theodor Adorno, um marxista que incorporara Freud e derivara para o estudo da música e da cultura. Serviu como ponte fundamental para manter o interesse pela teoria sociológica ampla e aprofundar em outra área.

A biblioteca de marxismo foi mudando para lugares cada vez mais marginais. Primeiro se diluiu na excelente biblioteca de literatura brasileira e sociologia da cultura que Gilberto Felisberto Vasconcellos deixou de herança quando mudou para Paris – e ocupou um belo espaço no apartamento que dividia com Paulo Henrique. Depois passou para um lugar ainda mais marginal quando casei com Cynthia Sarti, dona de uma bela biblioteca de Antropologia. Em seguida acabou num armário do quarto de empregadas de um apartamento que comprei depois da separação e usava como escritório – pois os livros de História começaram a se multiplicar como coelhos. Descendo mais um passo, a biblioteca de marxismo acabou encaixotada e trancada num contêiner junto com os estoques de minha editora.

Enquanto isso o Partido Comunista Chinês aderiu ao capitalismo (e os militantes do PC do B, de linha chinesa, passaram a ouvir a rádio de Tirana e adotaram a linha albanesa). Já o Partido Comunista Brasileiro renegou a ideia de revolução e se tornou o atual PPS. Caiu o Muro de Berlim. Desapareceu a União Soviética.

A dormência letárgica durou até o natal de 2008. Fui para São João da Boa Vista, terra de minha mulher, Lúcia Azevedo. Ia passar também um bom pedaço de janeiro no Sítio dos Macacos, com todo conforto providenciado por meu sogro. Resolvi ir até o contêiner. Empurra daqui, empurra dali, fui abrindo espaço suficiente para chegar até quase lá no fundo. Achei enfim a caixa onde estavam “O Capital” (em duas edições: a espanhola da Fondo de Cultura e a brasileira de “Os Economistas”), os “Grundrisse” e as “Teorias da Mais Valia”, além de edições paralelas de alguns capítulos que não entraram na obra. Coisa de uns vinte volumes.

Comecei tudo de novo, pensando no Brasil – mas isso é outra história, que fica para outro dia.

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