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Reminiscências de Marx 3: o socialismo evanescente
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O final da redação do primeiro volume de “O Capital” aconteceu num tempo em que a previsão de uma crise derivada da concentração de renda e poder político numas poucas mãos era uma realidade comprovável empiricamente com relativa facilidade. Marx era um voraz colecionador de estatísticas e as empregava largamente para mostrar a concentração pelo lado do capital. Além disso, a pobreza reinante até mesmo nas ruas de Londres, a capital do reino mais rico do planeta, fornecia o material histórico para acentuar os contrastes entre riqueza de uns poucos e miséria das massas na narração.

Entretanto, como a pretensão não era apenas de denúncia social, mas de formular uma ciência da História, era preciso encontrar um argumento de prova para a proposição de que este processo de concentração de renda desembocaria na falência do capitalismo e na eclosão do socialismo. Marx havia antevisto o centro dos argumentos. O crescimento do sistema se fazia em meio a crises cíclicas. Depois de cada uma delas sobreviviam apenas as empresas mais fortes, de modo que o capital se concentrava ainda mais.

Isso levou a uma hipótese teórica: num determinado ponto a concentração de capital seria tão alta – e o peso relativo do trabalho tão baixo, já que as partes estavam umbilicalmente ligadas – que as taxas de lucro cairiam. Neste momento a crise seria final, pois a capacidade de acumular desapareceria. Até a aí a questão poderia ser encaminhada de modo empírico: a evolução das taxas podia ser medida, de modo que a ciência poderia acompanhar o processo.

Mas a pretensão de totalidade implícita na transformação da História em ciência exigia mais ainda. Não bastava apenas a previsão conceitual de uma crise do capitalismo: havia a necessidade de demonstrar também sua solução. E esta seria a transformação da igualdade apenas formal do contrato de compra e venda de trabalho entre indivíduos, causadora da desigualdade, em igualdade real. Assim a hipótese da crise era acoplada a uma utopia de igualdade. Depois da crise final o proletariado chegaria ao poder e viria a época de justiça do socialismo. O princípio da desigualdade, virtuoso para Aristóteles e neutro para economistas como Adam Smith, deixaria de ser o norte para a produção social. A razão que planeja a economia tomaria seu lugar.

Uma coisa foi intuir, outra, provar. Os anos de trabalho não levaram Marx a nada que julgasse definitivo a ponto de merecer a publicação das partes que faltavam em “O Capital”. Após sua morte, Frederic Engels empregou o material de pesquisa e os planos de obra para publicar os volumes 2 e 3. Fez o possível com o que herdara e com os conhecimentos de que dispunha.

O resultado foi o incerto. Tanto a hipótese teórica da queda na taxa de lucro como a justificação da utopia de uma igualdade, muito promissoras ao final do primeiro volume, vão se esvanecendo à medida que o material de pesquisa aplicado segundo o plano da obra leva da esfera da produção para aquelas da circulação e do consumo. A leitura vai ficando cada vez mais detalhista e menos clara; os dados da pesquisa não se encaixam no plano da obra a não ser por crescentes manobras adaptativas.

Esta sensação de incompletude está na base da avaliação sucinta de Fernando Henrique Cardoso mostrada há pouco: Marx serve para analisar o mundo até o período em que viveu, até a segunda metade do século 19.

O “serve para analisar” datado tem muito pouco a ver com a utopia da igualdade expressa no projeto de socialismo – que continua válida até hoje como ideal. Tem muito mais a ver com aquilo que seria científico e verificável por números, os processos da concentração de riqueza e desigualdades crescentes na vida econômica e na vida social.

A combinação entre riqueza cada vez mais concentrada dos capitalistas e miséria no exército industrial de reserva estancou ao longo do largo período de três décadas entre a publicação do primeiro volume e a morte de Engels, ocorrida em 1895. A tarefa de concluir o quarto volume de “O Capital” passou para as mãos Karl Kautsky, líder dos socialistas alemães. Enquanto ele trabalhava, um colega de partido observava os dados econômicos do final do século 19 – e tinha ideias novas.

Seu nome era Edward Bernstein. Estudando as estatísticas da produção econômica alemã ele notou que, a partir de certo ponto, os indicadores passavam a apontar uma reversão do processo de concentração. Os salários reais dos operários cresciam, um número crescente de pequenos empresários surgia na esteira do sucesso dos grandes negócios, o sistema crescia sem que as taxas de lucro caíssem. Enfim: a previsão que parecia tão lógica três décadas antes estava sendo desmentida pela prática.

Estudando as causas desta mudança, Bernstein foi capaz de observar os efeitos de um fenômeno que Marx conheceu apenas marginalmente: o voto universal masculino, tornado padrão nos países mais desenvolvidos da Europa a partir da década de 1870. Antes de mais nada, é preciso notar que esta mudança tornava mais real o sentido da igualdade formal necessária para a livre venda do trabalho. Aumentar a participação eleitoral dos mais pobres era uma forma de lhes transferir poder – e mudar o próprio sentido da influência da política na economia.

Nos tempos de Marx havia apenas greves cruentas e as tentativas pioneiras de intervenção do Estado na regulamentação econômica – centradas sobretudo na limitação legal das jornadas de trabalho. O voto universal, generalizado na Europa na década de 1870, trouxe uma nova amplitude para o poder regulamentador atuar nas relações entre trabalho e capital.

Somando os dados da economia com mais variedade de riqueza com a política que permitia mais possibilidades de ação, Bernstein concluiu que havia outro caminho para a vida social como um todo – desde que um ideal longamente perseguido fosse deixado de lado.

A suposição da inexorabilidade de uma crise final do capitalismo sustentava a crença de que apenas uma revolução levaria a uma reversão da vida econômica na direção da igualdade. Bernstein, com suas novas observações, pensou em outro caminho para chegar ao socialismo: manter a democracia, empregar o poder de pressão do voto popular para regulamentar comportamentos (leis que estabeleciam valores mínimos para os salários, por exemplo) e diminuir desigualdades, além de absorver no Estado a prestação de certos serviços universais (educação, sobretudo, mas também saúde e saneamento).

O título do livro de 1899 onde estas propostas foram consolidadas é: “Socialismo Evolucionário”. O nome do partido criado para impor este programa foi: “Partido Social-Democrático”.

É curioso o contraste entre o destino amplo dessas ideias e o destino miserável da reputação de seu primeiro grande autor. Os marxistas que continuaram defendendo a revolução como caminho para o socialismo passaram a trata-lo como “O Renegado Bernstein”. São, ainda hoje, dominantes entre os marxistas – especialmente no Brasil. Tão dominantes que o livro pioneiro não foi traduzido para o português.

Em 2009, Fernando Henrique Cardoso e eu chegamos a aventar a possibilidade de tirar a obra do limbo. Encomendei uma tradução, ele se prontificou a fazer um prefácio. Mas a coisa nunca andou.

A citação fica para realçar o que realmente interessa. Entre os muitos que consideraram razoáveis os argumentos de Bernstein e aderiram ao projeto socialdemocrata estava Karl Kaustky. Assim, quando ele terminou a tarefa de editar o quarto volume de “O Capital”, em 1905, já não acreditava mais na cientificidade do argumento da crise decorrente da queda na taxa de lucros nem na via revolucionária para o socialismo.

Para além das crenças, o conhecimento dos fatos – ainda que retrospectivo – veio a dar uma base empírica ainda maior para as observações de Bernstein. A difusão da econometria, a partir da década de 1970, permitiu a reconstrução da distribuição de renda nas economias ocidentais desde o século 19.

O resultado confirma Marx como autor de uma previsão correta – a partir dos dados que conhecia. Mas indica também que o século 20 foi um período no qual a concentração de renda diminuiu em todo o mundo – ao contrário das previsões embutidas nas premissas marxistas. Mais ainda, nos países ricos este processo foi mais acentuado – também o contrário do modelo inicial embutido na lei da taxa de lucros decrescente.

Sem entrar em qualquer variante ideológica (e há infinitas neste caso) parece claro que o aumento do tamanho do Estado e a qualidade da regulamentação foram fatores muito relevantes para este resultado – até os anos 1970.

Também sem entrar em qualquer variante ideológica, parece claro que a tendência da desconcentração reverteu-se com a globalização. Os dados atuais apontam para uma concentração de renda que atinge de novo os mesmos níveis do último quarto do século 19 – o período em que Marx viveu.

Há, contudo, uma essencial diferença: ainda que não tenha se tornado um ciência, a História traz lá suas lições: o processo de concentração de renda em torno do capital não foi inexorável.

Ainda assim há muita gente que se assusta com Marx. O fantasma da ruptura, a imagem da crise que transformara radicalmente os pilares da vida social, o temor da revolução estão ainda presentes. Neste cenário se aplica uma última reminiscência de Marx, relacionada à automatização do trabalho: seria possível a coesão social com os graus de concentração de riqueza que o processo está trazendo?

Antes da resposta automática da crise, talvez seja o caso de relembrar a lição da História com a distribuição de renda. Esta lição essencial deve estar em mente quando se trata de avaliar as relações entre produção econômica e vida social. Buscando a totalidade, Marx quis traçar um nexo científico entre as partes, tendo como norte a realização prática do ideal da igualdade suposto na venda do trabalho assalariado como mercadoria.

Esta era a utopia não era propriamente marxista. Está expressa em lemas como “Consideramos verdades autoevidentes que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade”, da Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, ou o lema “Liberdade, igualdade, fraternidade” da revolução francesa de 1789.

São frases do tempo de Adam Smith – o que leva a outro tipo de reminiscências.

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