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Semana passada, foi noticiado que um advogado interpôs recurso de apelação ao TJSP pleiteando a nulidade de uma sentença. Segundo ele – que utilizou o ChatGPT para detectar que a sentença apresenta “probabilidade média a grande” de ter sido redigida por Inteligência Artificial (IA) – a sentença é nula por ferir o princípio do juiz natural. Será?
Para ter um bom ponto de partida para responder à questão, é necessário entender o contexto no qual os acontecimentos se deram: até a década de 1990, as peças processuais mais importantes eram redigidas com máquina de escrever - que, ao contrário de editores de texto (Word, etc.), não permite apagar texto já digitado, corrigir erros de digitação nem copiar/colar blocos de texto pré-formatados. Fazia-se o possível, mas não era comum ver fundamentações jurídicas muito extensas naquele tempo.
Com o surgimento dos editores de texto, as petições dos advogados passaram a conter fundamentação mais robusta, além de serem produzidas em muito menos tempo. Uma crítica dos juristas ganhou corpo a partir daí: as decisões judiciais (incluindo sentenças) não acompanharam o aumento da fundamentação das petições dos advogados.
Os juízes, de seu lado, se veem cercados por uma realidade em que o número de processos e de petições com múltiplos requerimentos aumentou drasticamente - hoje em dia, é comum que um único juiz seja responsável por, literalmente, milhares (às vezes dezenas de milhares) de processos -, fato que pressiona os magistrados a adotarem um ritmo de trabalho assemelhado ao de cadeias de produção (talvez não seja por acaso que o termo “produtividade" esteja na estatística oficial das serventias judiciais e dos juízes).
Com a popularização do uso da IA, todos os tipos de operadores do Direito - incluindo os juízes - passaram a contar com uma ferramenta poderosa e incansável, capaz de produzir textos robustos
A solução dada pelos tribunais para esse descompasso entre demanda e capacidade do juiz é conhecida: assessores. Com eles, os magistrados contam com mãos adicionais para a redação de textos jurídicos, de modo que o juiz passou a redigir pessoalmente somente os textos mais importantes, revisando os textos dos seus assessores, corrigindo eventuais erronias e assinando os textos que representem a melhor solução para o caso que estiver sendo analisado.
Ainda assim, os juristas direcionavam críticas à qualidade dos atos judiciais - a maioria com fundamento. Recentemente, com a popularização do uso da IA generativa aplicada à linguagem, todos os tipos de operadores do Direito - incluindo os juízes - passaram a contar com uma ferramenta poderosa e incansável, capaz de produzir textos robustos, coerentes e sem erros gramaticais, facilitando muito a tarefa de redigir peças processuais.
Neste contexto, os juízes - assim como os demais operadores do Direito - passaram a fazer uso de ferramentas que, com supervisão suficiente e aplicação de técnicas de refinamento, podem produzir rapidamente excelentes textos jurídicos, incluindo, finalmente, fundamentação robusta e apreciação minuciosa de todas as questões apresentadas pelas partes.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se posicionou no sentido de que é válido que o magistrado se utilize de IA para a confecção de textos jurídicos, desde que cumpra os requisitos estabelecidos para tanto (Resolução nº 332/2020).
Na prática, a orientação do CNJ não destoa da realidade que já se apresentava: os juízes revisavam os textos de seus assessores e, quando representavam o desdobramento adequado para o processo, os assinavam, conferindo-lhes eficácia e autoridade. Da mesma maneira se procede com os textos produzidos por IA.
A pergunta que fica é: considerando que na prática institucional o juiz revisa, corrige e assina a sentença – seja ela redigida por si mesmo, por um assessor ou uma ferramenta de IA generativa – qual seria, efetivamente, o problema da sentença redigida por IA?