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Imagem do ditador Xi Jinping no Museu do Partido Comunista da China, em Pequim
Imagem do ditador Xi Jinping no Museu do Partido Comunista da China, em Pequim| Foto: EFE/EPA/ROMAN PILIPEY

“PCC proíbe empinar moto na periferia de SP e espanca quem desobedece.” Bati o olho no título e por um instante pensei que a matéria falava do Partido Comunista Chinês. Suspeito que minha confusão momentânea pode ser sintoma de uma fixação em acompanhar o avanço imparável das vontades do PCC – para que fique claro, o chinês – sobre o Ocidente, em particular no Brasil. Assumo que a overdose da ditadura me deixou chato, monotemático e pessimista. O regime chinês tem tomado tanto do meu tempo e atenção que chegou ao ponto de encher o meu saco. Nesta semana, ouvi dizer que encho o saco dos chineses também.

Foi a terceira chamada telefônica em menos de dois meses com o mesmo conselho: esqueça os chineses. A última, nesta semana veio assim: “Macho, o embaixador chinês (Yang Wanming) te odeia”. Para mim, uma surpresa. Como alguém que não me conhece pode me odiar? Logo eu? Um sujeito que não odeia ninguém. Pois bem. Tentei entender melhor e ouvi uma explicação seguida de uma comparação bem horripilante. “Os chineses não perdoam e não há lugar seguro no mundo se eles decidirem se vingar. Não queira que aconteça com você o que aconteceu com aquele jornalista na Turquia (em referência a Jamal Khashoggi, assassinado no exílio por agentes da monarquia saudita, em 2018).” Esta, por sinal, foi a segunda vez que este amigo fez a mesmíssima comparação.

Em setembro, escrevi uma coluna sobre como a China está moldando o mundo à sua imagem e semelhança. O projeto de Xi Jinping é normalizar o regime. Banalizar o mal diante de um Ocidente cada vez menos assombrado e tolerante com ações do regime. O título era Deplorável mundo novo. Depois dela, uma outra sobre o sumiço da tenista Peng Shuai e mais adiante outra contando como o PCC se escorou no Foro de São Paulo para usar sua capilaridade para fazer disseminar a mensagem de que a China tem uma democracia diferente. Algo tão grandioso que o Ocidente não só precisa tolerar, mas aprender e replicar.

Xi olha para o mundo como se estivesse diante de um espelho. Nada pode ser diferente da imagem que ele tem de si mesmo.

Parece que há quem ainda não entendeu ou não quer entender isso. O PCC não vai mudar. O recado que todos os dias vem de Pequim é que o mundo tem que mudar a sua percepção sobre o regime. Mudar, no caso, significa implodir conceitos fundadores das civilizações ocidentais. Liberdade, Direitos Humanos, Democracia, para focar em um tripé universal, estão sendo redefinidos. E isso significa que, para que as ações do regime se tornem triviais, o mundo precisa mudar. O deplorável mundo novo está se tornando cada dia mais admirável.

Nas últimas duas semanas, o regime chinês inundou o Brasil com a sua propaganda. Os maiores veículos de comunicação brasileiros, que há tempos se nutrem da verba publicitária chinesa, abraçaram a causa com fervor. O carioca O Globo cedeu suas páginas para o embaixador Wanming, o maior dos lobos guerreiros da diplomacia chinesa nas Américas, atiçar sua alcateia. No rastro, a Folha de S. Paulo publicou uma “entrevista” que curiosamente tem (quase) o mesmo título do artigo de três dias antes. As aspas na palavra entrevista têm um motivo. As respostas que estão penduradas abaixo de cada uma das perguntas foram enviadas por e-mail. Quando isso acontece, o entrevistado é o dono da bola. Escreve o que deseja com o suporte de assessoria e técnicos. Produz um texto oficial que ganha a assinatura de um jornalista que teve o seu papel de mediador entre o leitor e o entrevistado anulado, pelo que é um pronunciamento em essência.

Wanming não fala com a imprensa brasileira. Manda textos e todos publicam. Com um pouquinho de exagero de minha parte, costumo dizer que de certa maneira Pequim já está editando jornais e revistas.

Citei a Folha e o Globo por terem sido os casos mais recentes e correlatos. Mas os dois jornais não são os únicos. A Folha tem ainda um ingrediente especial. Um artigo no topo que é imperdível.

Esta semana, enquanto “folheava” digitalmente o Globo e assistia a um webinar de um dos mais importantes think tanks brasileiros, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), eu me dei conta que, além de ser um chato, também sou démodé.

O jornal alugou uma de suas páginas para ditadura chinesa falar de como o regime é lindo e as violações aos direitos humanos atribuídas ao PCC são uma ficção americana e que as violações massivas aos direitos dos uigures, presos em campos de “reeducação” em Xinjiang, são uma farsa para difamar a China e seu povo. Sempre isso. É o que agora se convencionou malandramente chamar de “sentimento anti-China”, como se as críticas à ditadura fossem contra o povo, que é a vítima direta do regime.

É perfeitamente compreensível que o jornal precise fazer caixa para pagar as contas, o décimo terceiro do pessoal e seja lá o que for. Mas será que não existe mais uma linha que demarque o limite do razoável na relação financeira e pseudoeditorial com uma ditadura? Parece que não mais. Só alguém antiquado pode esperar isso. Custei a perceber, mas está cada vez mais claro. A China está conseguindo deixar, cada vez mais, o mundo à sua imagem e semelhança.

E o evento do Cebri, que citei logo acima, foi ainda mais educativo. Tudo era novidade. Nova forma de fazer política internacional, novos conceitos, novo sistema multilateral erguido com tijolinhos chineses e, claro, uma novilíngua com a sua fluidez de significados. Lembra-se do tripé Democracia, Liberdade e Direitos Humanos? Nada mais é o que parecia ser. Como definiu o ex-embaixador Marcos Caramuru: “A China iniciou a sua grande participação nos temas globais com uma visão muito pragmática das relações internacionais. Agora, a China nos traz uma visão conceitual”.

Embora o diplomata tenha dito isso em um contexto elogioso e agradecido, ele definiu bem o que vem por aí: conceitos chineses.

Sendo assim, vou parar de encher o saco dos outros e o meu. Minha resolução de Ano Novo: vou me esquecer do regime chinês.

Depois vou ligar para aquele mesmo amigo para dizer que minha decisão não tem relação alguma com o conselho dele. O que me assombrou foi perceber que, se continuar assim, daqui a pouco, o PCC dará um salve proibindo coisas no Brasil – e certamente será o chinês.

Estou precisando de um detox.

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