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Leonardo Coutinho

Leonardo Coutinho

Brasil, América Latina, mundo (não necessariamente nesta ordem)

Negação à democracia

Desordem nos Três Poderes: Montesquieu foi enterrado no Brasil

No Brasil, a distorção dos poderes começou a se consolidar com a crescente judicialização da política. (Foto: Dorivan Marinho/STF)

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Montesquieu está morto e enterrado. Seu túmulo está no Brasil. Não se trata de seu corpo físico, que repousa na França, mas de suas ideias que serviram de alicerce para as democracias. Mais específica e ironicamente, a cova brasileira de Montesquieu foi cavada na Praça dos Três Poderes. O pai da teoria da separação dos poderes foi enterrado sem honras, sem herdeiros e sem quem reivindique seu espólio.

A democracia moderna se ergue sobre um tripé essencial: o Legislativo, que cria as leis; o Executivo, que governa; e o Judiciário, que interpreta e aplica a lei. Montesquieu, em "O Espírito das Leis", formulou essa divisão como um freio à tirania, garantindo que nenhum poder se sobrepusesse aos outros como um absoluto.

No Brasil, contudo, essa separação nunca foi perfeita. Basta lembrar os episódios recentes de compra de votos com emendas parlamentares e o inigualável escândalo do Mensalão, quando o país foi apresentado ao modelo de governança do governo Lula 1 que, na falta de uma base parlamentar, pagava mensalidades para políticos votarem conforme as vontades do Planalto.

Embora fosse feio, sujo e ilegal, os arroubos corruptos que infringiam as regras da independência dos poderes se davam em uma disputa em que cada um dos lados ainda podia resistir às pressões e vontades do outro. Era política ruim, mas não anulação. E mesmo sendo tão ruim, havia brechas para que cada um dos três poderes da República coexistissem.

Mas algo se perdeu no Brasil. O Poder Judiciário expandiu suas atribuições, usurpando funções alheias e impondo sua vontade sobre os demais poderes, sem que haja qualquer contrapeso efetivo. Essa distorção começou a se consolidar com a crescente judicialização da política. Partidos incapazes de vencer no voto passaram a recorrer ao Judiciário para impor suas agendas.

O Supremo Tribunal Federal, em vez de atuar como árbitro das disputas constitucionais, assumiu a função de legislador e, não raro, de governante. 

As decisões passaram a ditar políticas públicas, regulamentar matérias que deveriam ser debatidas no Congresso e interferir diretamente em ações do Executivo. Ninguém fez mais isso do que o PSOL, a Rede Sustentabilidade e suas micro bancadas.

O Judiciário avançou tanto sobre os demais poderes que alguns de seus ministros não veem mais problema algum em dizer que o Judiciário assumiu uma função que “veio para ficar”. A fala recente de Flávio Dino, sobre quando a política falha, o Supremo decide, sintetiza bem esse fenômeno.

O problema é que essa "falha da política" não é, muitas vezes, um defeito do sistema, mas sim uma expressão legítima da vontade popular.

Se o Congresso não aprova determinada legislação, isso significa que os representantes eleitos decidiram não seguir por aquele caminho. Como representantes do povo, eles tendem (obviamente não como deveriam) a ser mais sensíveis ao que a sociedade espera. Foram eleitos para isso e estão sujeitos à rejeição das urnas se não atenderem às aspirações de seus eleitores.

O Judiciário, ao tomar para si a prerrogativa de "corrigir" essa suposta falha, subverte o jogo democrático e impõe uma agenda sem o devido respaldo popular

O caso se torna ainda mais aviltante quando a justificativa da usurpação é em nome da nobre missão de civilizar o país. Um Brasil selvagem com eleitores primitivos que não sabem o que é bom para eles e que não entendem quão sublime é ter quem rasgue seus votos para o seu próprio bem.

A ausência de freios e contrapesos adequados permitiu que ministros do STF acumulassem um poder desproporcional. A própria Constituição Federal, que deveria ser guardada por essa instância, tornou-se um instrumento maleável conforme os interesses da corte.

Decisões monocráticas impactam diretamente políticas nacionais, determinam a vida de milhões de brasileiros e, muitas vezes, desautorizam escolhas feitas por aqueles que receberam o mandato popular para governar e legislar.

A democracia não se resume ao voto, mas também não sobrevive sem ele. Quando juízes passam a governar sem qualquer freio institucional, o equilíbrio do sistema se rompe.

O Brasil aceitou, sem maior resistência, que um pequeno grupo de togados decida o destino da nação acima daqueles que receberam do povo a missão de governar e legislar.

Montesquieu, que nos ensinou sobre a importância da separação dos poderes, não teria dificuldade em reconhecer o que foi erguido sobre o túmulo na idiossincrática Praça dos Três Poderes, em Brasília, é a negação da Democracia.

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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