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O globalismo na prática
| Foto: Pixabay

Ridicularizar alguém ou uma ideia é uma forma eficiente de derrotá-la. A estratégia é tão antiga que já foi descrita por Aristóteles e Platão. Mas a estratégia fora realmente dissecada pelo alemão Arthur Schopenhauer, ainda na primeira metade do século 19, quando ele descreveu passo a passo o que seria tal estratégia que vai muito além do debate, o que ele chamou de dialética erística. Ela, em resumo, pode-se entender como a indomável vontade de vencer uma discussão, ainda que sem argumento algum, ou propositalmente valendo-se de argumentos sabidamente inválidos, mas que servem perfeitamente para liquidar a fatura e enganar incautos.

Na campanha eleitoral de 2016, o então candidato Donald Trump apontou um tal globalismo como uma das causas dos problemas dos Estados Unidos. Segundo ele, o “americanismo e não o globalismo” seriam o credo de seu governo. Pois bem. O mundo inteiro reagiu e o futuro presidente americano logo se transformou em um líder antiglobalização, ao moldes dos black blocs que tocaram fogo em Seattle (1999), Praga (2000) e Gênova (2001), em uma onda de protestos contra o Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio e o G8.

O New York Times reforçou a tese de que o globalismo era um conceito de extrema-direita, que Trump evocava para liderar o isolacionismo americano ou a negação da globalização. Como se fosse possível impedir o funcionamento de uma das engrenagens mestras do comércio e do desenvolvimento tecnológico mundial que vem rodando desde os tempos dos fenícios. Mas o importante é massacrar a ideia do outro e fazer prevalecer a própria.

O globalismo como sinônimo de globalização se tornou algo tão verdadeiro que, tentar explicar as coisas como sendo fenômenos diferentes, soa tão ridículo quanto dizer que a terra é plana ou como deveríamos defender ditaduras como as de Cuba e Venezuela.

Como em tudo na vida, a total confusão gerada em torno dos conceitos auxilia quem se nutre dos benefícios e privilégios gerados pela negligência ou incompreensão. Eu mesmo nunca entendi direito o tal globalismo. Mas nesta semana, justamente nesta semana, li um documento de 2017, que a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) enviou para o Ministério da Saúde do Brasil, que pode ser um excelente exemplo para entender o tão mal explicado globalismo.

Instada a atender uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), a organização internacional simplesmente respondeu: “respeitosamente informo que a OPAS/OMS não se submete, em nenhum efeito, à competência ou jurisdição dos órgãos do Poder Judiciário do Brasil”. Ou, fora da linguagem jurídica ou diplomática, a OPAS mandou as autoridades e as leias brasileiras às favas. Ao que parece, este é o globalismo na prática.

Escorada na imunidade que protege as organizações multilaterais e seus membros, a OPAS não se vê obrigada a prestar contas sobre os bilhões de reais que todos os anos o Brasil repassa para organização – por meio de contribuições obrigatórias e convênios e contratos, como o famigerado acordo que possibilitou Cuba enviar mais de 15 mil médicos para serem explorados no Brasil.

Segundo maior contribuinte da OPAS, o Brasil não tem direito de sequer cobrar esclarecimentos sobre como os impostos pagos pelos contribuintes brasileiros são empregados pela entidade. Isso, pelo menos, ficou patente no documento oficial emitido pela organização e entregue para o Ministério de Saúde, ainda na gestão de Michel Temer. Se esse absurdo é o que Trump chamou de globalismo, acho que agora entendi.

Do Olimpo das organizações multilaterais, seus diretores se sentem no direito de apresentar a fatura, mas nunca prestar contas. Ignoram a soberania dos países e tentam impor regras e decisões que, sob a percepção geral das pessoas e dos próprios meios de comunicação, têm um valor quase divino. A ONU disse. A OMS disse. A OMC disse. E por aí vai...

Assim como a OPAS, as três siglas acima são apenas alguns exemplos de entidades que compõem o sistema multilateral. Ou seja, composto por representantes de estados membros. Países que concordam em seguir acordos que (na teoria) ajudariam a estabilizar o mundo. Pena que só na teoria.

Em sua página na internet, a ONU se define como uma organização que promove os direitos humanos e que “tem feito mais para apoiar a democracia em todo o mundo do que qualquer outra organização global”. Mas o mundo ignora o fato de que algo próximo a metade dos estados membros da ONU não são democracias plenas. Muitos deles são ditaduras com poder de voto e veto dentro da definição dos rumos da organização que tem essa aura de sagrada. Notórios violadores dos direitos humanos ditam as regras sobre o tema na organização. E Rússia e China usam seu poder de veto para proteger seus amigos (e, muitas vezes, eles mesmos).

A OMS barbeirou e segue barbarizando na gestão da crise da Covid-19 e a OMC resvala à irrelevância. Recentemente, o brasileiro Roberto Azevêdo, cuja eleição custou ao governo Dilma uma série de concessões para China, renunciou e foi trabalhar (literalmente) no dia seguinte na vice-presidência de uma multinacional de alimentos. Vender refrigerantes e salgadinhos ficou mais atraente, ao que parece.

Não se trata de implodir o sistema multilateral por ele ter se transformado em uma caricatura ou até mesmo uma fachada para alguns de seus membros e funcionários cometerem crimes, como foi o caso da OPAS no Programa Mais Médicos. Mas não é minimamente razoável seguir defendendo-o como ele está, apenas pelo seu significado simbólico. O mundo mudou e o sistema multilateral se transformou em uma armadilha. Sem um redesenho sua função realmente é digna de muita desconfiança e rejeição.

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