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Nayib Bukele em foto de 2012, quando era prefeito de Nuevo Cuscatlán e participou da assembleia da FMLN na qual o partido, membro do Foro de São Paulo, ratificou a candidatura presidencial de Salvador Sánchez Cerén, que governou El Salvador de 2014 a 2019.
Nayib Bukele em foto de 2012, quando era prefeito de Nuevo Cuscatlán e participou da assembleia da FMLN na qual o partido, membro do Foro de São Paulo, ratificou a candidatura presidencial de Salvador Sánchez Cerén, que governou El Salvador de 2014 a 2019.| Foto: Arquivo El Faro

Quando a guerra civil de El Salvador terminou, em 1992, Nayib Bukele era um menino prestes a completar 9 anos. Naquele mesmo ano, os guerrilheiros que lutavam para instalar um regime socialista no país registraram um partido para tentar ganhar o poder por meio do voto, já que a luta armada havia dado errado. Nascia, então, a Frente Farabundo Martí para Libertação Nacional (FMLN), que orgulhosamente se define como o único partido de esquerda e membro do Foro de São Paulo naquele país.

O menino Bukele cresceu e virou marqueteiro político. Embalado pela agência de publicidade do pai, iniciou a carreira e passou a cuidar da conta mais importante da firma. Nada mais nada menos que a da FMLN. Foram 12 anos vendendo a imagem do partido guerrilheiro.

Por razões do ofício, é impossível que Bukele não tenha trabalhado ombro a ombro com a equipe do então marqueteiro oficial do PT, João Santana, que foi enviada para El Salvador para tentar eleger pela primeira vez um presidente da FMLN.

Para quem não se lembra, Mônica Moura – que vem a ser a mulher e operadora financeira de Santana – contou em sua delação à Operação Lava Jato como o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou que o marqueteiro brasileiro enviasse seu pessoal para trabalhar na campanha no país centro-americano.

Dez anos atrás, totalmente integrado aos amigos do Foro de São Paulo, Bukele morria de amores por Hugo Chávez e Fidel Castro; elogiou publicamente Daniel Ortega; e não se fazia de rogado ao expressar sua admiração por Che Guevara

Conforme Mônica Moura descreveu, a Odebrecht e o PT pagaram integralmente os US$ 3 milhões que eles cobraram para eleger o candidato do partido dos ex-guerrilheiros. Naquele ano de 2009, vale relembrar, era Bukele quem cuidava da publicidade da FMLN. Embora as buscas nos dados abertos não ofereçam resultados que permitam cravar que eles trabalharam juntos, é improvável que a interação não tenha ocorrido.

Depois de conquistar a presidência de El Salvador com a ajuda de João Santana, Lula e Odebrecht, o FMLN deu um passo a mais na relação com Bukele. De prestador de serviço, ele passou a ser membro do partido. Em 2012, Bukele foi eleito prefeito de uma cidade com pouco mais de 6 mil habitantes nas franjas da capital San Salvador.

Naquela época, totalmente integrado ao partido e aos amigos do Foro de São Paulo, Bukele morria de amores por Hugo Chávez e Fidel Castro; elogiou publicamente o carniceiro da Nicarágua, Daniel Ortega; celebrava o avanço da esquerda no Chile; festejava o seu partido egresso da guerrilha; e não se fazia de rogado ao expressar sua admiração por Che Guevara.

Ele fez várias postagens no antigo Twitter para registrar seu pensamento revolucionário, como disse em uma entrevista de 2012: “O que posso dizer é que sou um esquerdista radical porque quero mudanças radicais em El Salvador, onde a ‘lei da selva’ não deve mais prevalecer. No mundo de hoje há conservadores e radicais: os conservadores não querem mudanças e os radicais, como eu, querem mudanças e sem esperar tanto tempo”.

Depois disso, Bukele alçou voo. Foi eleito prefeito da capital e já não aceitava mais ser um personagem secundário na estrutura partidária da FMLN, até hoje nas mãos de guerrilheiros de pijama. Como Bukele queria mais, muito mais, ele partiu para o choque, vendo que a companheirada podaria suas asas. A relação esgarçou de tal maneira que ele terminou sendo expulso do partido.

Bukele, então, partiu para a desforra. Lançou-se candidato à presidência e desbancou o FMLN. No poder, passou a se vender como alguém sem ideologia para se desvencilhar de suas origens partidárias. Criou para si mesmo o rótulo de máquina de eficiência que varreria a corrupção, a violência e o atraso.

Em um dos passos para fazer valer o seu presente politicamente agnóstico, Bukele correu para as redes para apagar as pistas sobre seu pensamento. E, como muito do que Bukele pensava e dizia chegava ao mundo por meio do velho Twitter, foi por lá que ele começou a queima de arquivo.

Aqueles posts citados em um dos parágrafos anteriores foram todos deletados. São mais de 140 postagens incômodas que estão arquivadas on-line, graças ao trabalho de alguns jornalistas salvadorenhos que se anteciparam à faxina que o presidente faria em seu perfil. O acervo digital funciona como um repositório de fósseis de um Bukele que faz de conta que não existe mais.

Está ficando muito claro que muita gente não liga para democracia. Quer que alguém cante a música que é agradável aos seus ouvidos

Por mais que Bukele quisesse se vender como um homem livre de ideologias, ele acabou caindo no gosto da direita latino-americana. E a conquista foi fácil. Bem fácil. Além de se vender como um homem do livre mercado, de ter espinafrado Nicolás Maduro ao ponto de reduzir as relações diplomáticas ao nível mais baixo da história dos dois países, ele resolveu atacar com mão de ferro aquele que é um dos maiores problemas que atormentam os salvadorenhos: a violência.

Problema número um para muita gente, por toda a América Latina.

Bukele enjaulou massivamente os mareros (como são chamados os bandidos por lá), fez questão de mostrar que animais precisam ser tratados como animais e passou a exibi-los totalmente dominados. Um espetáculo e tanto, sobretudo para quem vê de longe e sonha com o fim da criminalidade em seus países. O fenômeno é tão pop que todos passaram a querer um Bukele para chamar de seu.

Em El Salvador, os efeitos são reais. A violência foi controlada e o povo nunca esteve tão feliz. Um espetáculo tão perfeito que deu a ele um salvo-conduto para absolutamente tudo. Fazendo valer as suas origens políticas, cujo DNA é autoritário, ele reproduziu o playbook já aplicado por Hugo Chávez, na Venezuela; Evo Morales, na Bolívia; e Daniel Ortega, na Nicarágua. A famosa turma do Foro de São Paulo, de onde Bukele saiu, mas do qual não perdeu o cacoete.

Ele meteu a mão no Judiciário e no Congresso e esmaga com quem atravessa seu caminho. Exatamente como seus ex-companheiros do Foro, mas, agora, com o rótulo de direita. Bukele arrasa a democracia e é aplaudido. Afinal, o que vem a ser democracia em um país estraçalhado pela violência e crime? Qualquer coisa que melhore, ainda que seja uma ditadura, soa melhor. Isso é evidente. Mas não é normal, razoável ou justificável.

Bukele está bombando porque ele ofereceu algo concreto em concorrência com algo abstrato para a maioria dos latino-americanos. Ele entendeu que o medo é uma porta aberta para passar muita coisa. O pavor da morte supera o apreço pela liberdade, democracia e outras coisas caras. É uma decisão utilitária que passa pelo raciocínio.

O desprezo pela democracia pode ser explicado de algumas formas. Além do fato de que nunca soubemos em nossa região o que é viver em um regime democrático, há o equívoco generalizado de associar nossas mazelas ao fracasso da democracia. Como se algum dia tivéssemos tido a experiência de viver em democracias saudáveis.

Além disso, nos últimos anos o conceito de “democracia” foi sequestrado e transformado em um ativo para menosprezar adversários políticos. O ressentimento gerado por esse tipo de prática se converte como porta de entrada oportunistas como Bukele se apresentarem como remédio contra globalistas, ecologistas e uma série de outros grupos que tomaram para si o título de “guardiões da democracia”.

Mas, na prática, está ficando muito claro que muita gente não liga para democracia. Quer que alguém cante a música que é agradável aos seus ouvidos. No mundo real, no qual a democracia é customizada feito abadá de carnaval, cada um segue no bloco de seu ditador favorito.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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