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O debate público brasileiro tem se concentrado sobretudo no ativismo judicial. A percepção de que tribunais assumem funções próprias da política está tão consolidada que expressões como “juristocracia” já se tornaram familiares. Essa crítica é necessária, mas talvez não seja suficiente. O ativismo judicial é apenas a parte mais visível de um fenômeno mais profundo, que também alcança órgãos estruturais do sistema de Justiça.
Menos discutido, mas igualmente relevante, é o ativismo que se manifesta nas chamadas funções essenciais à Justiça, em seus órgãos que são federais e estaduais: Ministério Público, Defensorias Públicas e Advocacia Pública. Nascidos com o propósito de atuar em defesa da ordem jurídica, dos direitos fundamentais, da população vulnerável e da juridicidade dos atos estatais, esses órgãos têm assumido papéis que vão além de suas atribuições constitucionais. O resultado é a formação de uma espécie de tecnocracia jurídica, em que especialistas de carreira, sem mandato popular, atuam como formuladores de políticas públicas e condutores de agendas ideológicas.
O Ministério Público tem sido paradigmático quanto a essa mudança de atribuição. A instituição passou a elaborar materiais e cartilhas que não apenas informam, mas emitem juízos valorativos sobre temas sociais complexos. Exemplo recente, em alguns estados, é como penitenciárias foram descritas como “senzalas contemporâneas” e como projetos legislativos de recrudescimento penal foram qualificados como “genocidas”.
O MP também tem ajuizado ações visando controlar conteúdos de meios de comunicação, com pedidos de cassação de concessões sob o argumento de desinformação. A preocupação com fake news e integridade do debate público é utilizada como critério para restringir a liberdade de expressão, aproximando-se de uma função censória que a Constituição não lhe confiou e nem poderia confiar, porque não se encontra em seu texto. Ainda haveria muitos outros exemplos a ilustrar o que afirmo.
A incorporação de conceitos como racismo estrutural, identidade de gênero, discurso de ódio e direito ao clima demonstra como a linguagem do direito passa a ser usada para implementar agendas específicas
As Defensorias Públicas também ampliaram seu raio de atuação. Para além da assistência jurídica aos necessitados, passaram a realizar mutirões de alteração de nome e gênero, inclusive de menores de idade, fundamentando tais práticas em normas internacionais e teorias identitárias. Expandiram ainda suas atribuições ao formular teses como a dos custos vulnerabilis, que lhes garante intervenção ampla em processos sem previsão constitucional expressa. Ao incorporar agendas de identidade como objetivos institucionais, projetam-se para além do campo jurídico e ingressam no terreno da formulação de políticas públicas.
A Advocacia Pública, por sua vez, deixou de se limitar à defesa técnica do Estado e à orientação jurídica e, em diferentes ocasiões, tem atuado em nome de autoridades ou familiares de governantes, como se fosse advocacia privada. Além disso, participa ativamente de litígios que envolvem narrativas políticas, como “defesa da democracia” ou “combate à desinformação”, o que, no caso da AGU, até se exterioriza na criação de órgão em sua estrutura com essa finalidade. Essa atuação, embora apresentada como proteção do Estado, mostra alinhamento de agenda governamental com foco ideológico.
Esses casos não são isolados. Eles se inserem em um padrão mais amplo de atuação em que as funções essenciais à Justiça passam a se perceber como protagonistas de transformações sociais, como se tivessem recebido esse mandato do titular do poder. É aqui que se percebe a afinidade com a tecnocracia: tal como engenheiros, cientistas ou tecnólogos, em outras épocas, reivindicaram governar em nome da técnica, os órgãos jurídicos reivindicam um papel de condução social em nome do saber jurídico.
A história da tecnocracia ajuda a compreender essa tendência. Desde a concepção do rei filósofo em Platão, passando pelo positivismo de Saint-Simon e Comte, até chegar às experiências modernas da Technocracy Inc., de Howard Scott, sempre houve a proposta de substituir o governo político pelo governo técnico.
Na segunda metade do século XX, a doutrina tecnocrática vigente destacava como corporações e especialistas formaram verdadeiras “tecnoestruturas” de poder. Hoje, as grandes empresas de tecnologia demonstram como essa lógica se perpetua, controlando fluxos de informação e influenciando comportamentos em escala planetária. A analogia com os órgãos do sistema de Justiça pode ser invocada, pois, em ambos os casos, fala-se de legitimidade técnica para justificar escolhas políticas, mas com a diferença fundamental de que, no caso dos órgãos do sistema de justiça, fazem parte do Estado. Logo, detêm poder coercitivo ou de influência direcionadora de políticas públicas.
Tal movimento institucional também se alimenta de correntes intelectuais derivadas da teoria crítica. Herbert Marcuse já falava na “marcha sobre as instituições” como estratégia de transformação social. Essa marcha, para além de uma mente ativista constante, produziu, para a atualidade, diferentes vertentes, tais como: o racialismo, que interpreta a vida social a partir da divisão entre brancos e não brancos; o feminismo, que ressignifica o direito e a política em chave de opressão de gênero; o indigenismo, que projeta disputas identitárias em nome da ancestralidade e do território; e até a captura da agenda de liberdade religiosa, reinterpretada, em alguns casos, para servir a disputas raciais ou culturais. Todas essas correntes compartilham a mesma matriz: a oposição binária entre opressores e oprimidos, característica do neomarxismo contemporâneo.
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É de se registrar que, nos últimos anos, quase não há exceções entre órgãos componentes das funções essenciais à Justiça a abraçar as agendas DEI e ESG como se fossem normas cogentes, embora sejam evidentes pautas político-ideológicas que demandariam respaldo popular para se implementar.
Quando essas teorias ingressam nas instituições jurídicas, deixam de ser propostas e narrativas acadêmicas para se transformar em programas institucionais.
A incorporação de conceitos como racismo estrutural, identidade de gênero, discurso de ódio e direito ao clima demonstra como a linguagem do direito passa a ser usada para implementar agendas específicas. Embora consideradas no espaço do debate democrático (ambiente correto para disputar ideias e gerar políticas públicas), tais temas são apropriados por órgãos sem voto e transformados em pauta oficial, o que desloca o eixo da política para o interior de instituições que deveriam estar limitadas por suas atribuições constitucionais.
Os efeitos sobre os direitos fundamentais são significativos. O direito à vida é relativizado quando a proteção ao nascituro perde prioridade em nome de concepções ideológicas. A liberdade é tensionada por iniciativas que, sob o argumento de combater a desinformação, restringem o pluralismo de ideias e a livre manifestação do pensamento. A propriedade é afetada pela expansão de ações coletivas em nome de conceitos jurídicos indeterminados e pela intervenção em contratos, que, muitas vezes, resultam em formulação de políticas públicas por via judicial ou administrativa.
A corrente doutrinária do direito que respalda esse processo é, primordialmente, o neoconstitucionalismo, que, ao privilegiar princípios abertos e interpretações consequencialistas, dá margem a ampliações interpretativas que se distanciam da legalidade consagrada pelo representante do titular do poder.
Esse quadro pede contenção. Em Restoring the Lost Constitution: The Presumption of Liberty, Randy Barnett oferece um antídoto. Propõe que a Constituição seja interpretada de acordo com seu texto e significado originais e que toda atuação estatal parta de uma presunção em favor da liberdade. Ao recuperar a ideia de que o poder deve ser limitado e justificado, Barnett oferece um critério que impede que instituições ampliem suas funções a partir de interpretações abertas. Trata-se de restaurar a Constituição perdida, reafirmando que seus limites são barreiras contra a expansão indevida do poder estatal.
No campo institucional, iniciativas como a da Associação Lexum funcionam como faróis. Ao reunir juristas comprometidos com a defesa da liberdade, da separação de poderes e da aplicação da lei segundo seu texto, a Lexum recorda que a função do sistema de Justiça não é implementar agendas ideológicas, mas assegurar o regular funcionamento do Estado de Direito. Ao denunciar excessos e propor o resgate da função original das instituições, a Lexum reforça a importância de limitar a tecnocracia jurídica e preservar a democracia constitucional.
O ativismo dos órgãos componentes das funções essenciais à Justiça permanece menos visível que o judicial, mas não menos relevante. Reconhecê-lo é um passo essencial para conter sua expansão e preservar o equilíbrio institucional. Esse movimento não implica negar a importância desses órgãos, mas reafirmar que seu papel é servir à Constituição e ao cidadão, não substituir a política. O desafio está lançado. Conter a tecnocracia jurídica é proteger não apenas o Estado de Direito, mas a própria ideia de democracia.
Zizi Martins é ativista pela liberdade. Membro fundadora e diretora-secretária da Associação Lexum, presidente do Instituto Solidez e vice-presidente da ANED. Procuradora do Estado da Bahia, advogada, pós-doutora em Política, Comportamento e Mídia, doutora em Educação, mestre em Direito, especialista em Direito Administrativo e em Direito Religioso.
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Nota: A Lexum não adota posições específicas sobre questões jurídicas ou de políticas públicas. Qualquer opinião expressa é de responsabilidade exclusiva do autor. Estamos abertos a receber respostas e debates sobre as opiniões aqui apresentadas.




