• Carregando...
“A esquerda erra no atacado e também no varejo”
| Foto: Pixabay

A leitura do recém-lançado livro “Democracia em convulsão”, de Mércio Gomes, é fundamental para quem quiser refletir sobre aspectos políticos e culturais da atualidade. Também autor de “O Brasil inevitável” e de diversos ensaios na área de Antropolgia, Mércio investiga, entre outros temas, a polarização da sociedade brasileira entre a esquerda e a direita, a herança do colonialismo, o papel da classe média e a suposta crise de instituições fundamentais para uma democracia saudável. Nesta entrevista, Mércio apresenta sua visão original da política brasileira e explica as razões da identificação do “povão” com o presidente Bolsonaro.

- Você cita em seu livro a “elite política de viés esquerdista”, que “brada slogans revolucionários” enquanto se acomoda com o patrimonialismo e o corporativismo. Considerando o histórico recente de alianças dos partidos de esquerda com os interesses do grande capital e a chamada agenda globalista, a esquerda brasileira deseja realmente uma revolução? De que tipo?

MÉRCIO GOMES: A esquerda brasileira é herdeira do marxismo e de pensadores brasileiros que consideram a economia como o fator mais importante na formação de uma nação. A esquerda já quis fazer revoluções, mas é provável que neste momento toda essa vociferação não passe de retórica. A esquerda acha que tem uma boa visão do Brasil e de seu povo, mas, como a história nos tem mostrado, erra no atacado e também no varejo. A esquerda precisa se abrir para uma visão mais culturalista do mundo para absorver o comportamento e a moral do povo e com ele se reintegrar.

A política não é somente uma luta pelo poder institucional. É preciso ter uma moral moldando-a. Neste momento, a esquerda tem que aceitar que a direita ganhou a presidência e tem que parar de querer derrubar o presidente atual. Seu comportamento se assemelha ao dos liberais democratas americanos. Eles infernizaram a vida de Trump a tal ponto que, ganhando agora, receberão em breve o troco com a mesma veemência e azedume, e os americanos vão sofrer por isso. Melhor seria nós brasileiros anteciparmos o que poderá acontecer em dois anos e pararmos com o dramalhão que vivemos agora.

- Contrariando e frustrando a esquerda, mesmo em meio à pandemia a popularidade de Jair Bolsonaro conquistou e manteve um patamar confortável. A que você atribui isso? Que outros fatores, além do auxílio emergencial, explicam a resiliência do presidente?

MÉRCIO: Jair Bolsonaro é um caso excepcional no Brasil, que se assemelha a meia distância com Jânio Quadros. Elegeu-se por mérito exclusivo. Acontece que Bolsonaro vem de uma importante raiz sociocultural brasileira, o caipira paulista (na modalidade italiana), o sujeito que sabe se virar, acredita na individualidade e desconfia seriamente dos senhores da terra, da classe média, dos usurpadores, dos magistrados, de todos que os querem confrangê-lo a uma espaço residual na vida.

Em escala diferente, esse caipira se reverbera em muitos tipos sociais do Brasil. Bolsonaro saiu de uma situação de caipira destituído mas orgulhoso para o exército, depois para a política e daí para se alçar ao que é hoje: um homem que sabe se virar e não tem medo de ser o que é. Onde no mundo isso não seria uma qualidade política extraordinária?

Entretanto, por receio, desprezo e despeito, a empolada classe média elitizada brasileira não vê o quanto Bolsonaro representa para o povão. O povão vê essas qualidades, porque essas qualidades são respeitadas e aspiradas pelo povão.

Os adversários mais renitentes e o grosso dos comentaristas políticos querem atribuir o aumento de popularidade de Bolsonaro, nesta desgraçada pandemia, ao auxílio emergencial, e erram terrivelmente em suas análises e previsões políticas. Por essas previsões Bolsonaro já teria caído, teria sido defenestrado, teria sido derrubado por golpe militar, teria sofrido impeachment e teria até renunciado e se suicidado muitas e muitas vezes.

- O que distingue e define a esquerda e a direita hoje, no Brasil e no mundo? De que forma a polarização que se estabeleceu pode ser superada, revertida ou ao menos mitigada?

MÉRCIO: Os temas tradicionais da esquerda e da direita – que vieram do Iluminismo, da Revolução Francesa, do liberalismo anglo-americano, do marxismo, do positivismo (Trabalhismo no Brasil), da Revolução Soviética, do nazifascismo (Integralismo no Brasil) e do nacionalismo – estão embolados hoje em dia.

A esquerda mundial defende o internacionalismo, na modalidade globalismo, agora bem amarrado à ONU. Está-se criando ou augurando uma nova hierarquia de poder mundial. Já a direita, antes internacionalista, pela defesa do capitalismo de laissez-faire e dos imperialismos, defende a autonomia cultural e a soberania das nações.

“Mudança de sexo na infância, automortificação ou proibição de se criar passarinho, convenhamos, são imposições insuportáveis”

É evidente que a globalização – troca (ainda que desigual) de bens, serviços, conhecimento e tecnologia – é um fato consumado e crescente. Mas não deve implicar perda de autonomia cultural – pelo menos não da forma abrupta e avassaladora como insistem os globalistas. Mudança de sexo na infância, automortificação pela História, ou proibição de se criar passarinho, convenhamos, são imposições insuportáveis.

Nesses últimos 50 anos a esquerda vem se apegando ao globalismo, desejando uma ordem global, uma ética transcultural, sob o comando de algum tipo de inteligência e poder autoinstituídos como superiores. Até americanos e ingleses, para não falar nos árabes e eslavos, se ressentem dessas imposições. A modulação ético-cultural do “politicamente correto” é uma espécie de pré-teoria premonitória dessa vontade de poder globalista. Há resistências muito fortes a isso que viraram ironicamente atitudes da direita.

Socialmente, a esquerda defende a classe média, convencida do seu conhecimento superior, e faz vistas grossas para seus privilégios de classe, como se fosse uma pequena nobreza rentista e reacionária do século 19 – precisamente o que antes era a direita.

No Brasil, surge uma direita nova e agressiva a partir das frustrações do povão proletário e lumpenproletário que não suportou mais ver o largo distanciamento moral, social e econômico com a classe média, receptora principal das benesses da expansão consumista e dos privilégios culturais e políticos. Essa nova direita se opõe à esquerda tradicional e liberal porque efetivamente esta se acha refinada e culta e merecedora de dirigir o país.

Em outros tempos, o povão ter passado para a direita seria considerado uma vergonha política inominável para a esquerda. Acontece que o povão não concorda mais com a esquerda. Junta-se ao povão o enorme segmento da classe média que ficou por baixo na ascensão socioeconômica e cultural dos últimos anos. Essa nova configuração político-social grita por espaço no palco da vida e não quer mais ficar confinada aos últimos lugares da plateia.

- Quais são as características peculiares da democracia no Brasil? Nossa democracia é diferente das outras democracias do mundo? É uma democracia plena? Por quê?

MERCIO: A democracia em qualquer país é sobretudo um exercício cultural que representa uma psicologia coletiva. Nós somos psicologicamente um povo intenso, amoroso, aberto ao novo, mas não equilibrado, e sim portador de uma boa dose de histeria. A classe média está histérica e incoerente, por sua insegurança social, enquanto o povão tenta ao menos provocar algum equilíbrio. Interpretar as mudanças de votação, ora favorecendo a esquerda, ora a direita, é, para o povão, a forma sensata de dizer aos protagonistas da nação para serem equilibrados e não forçarem a barra nem para um lado nem para o outro.

O sentimento geral do brasileiro é de potencial de diálogo, apesar das aparências atuais. Nossa democracia funciona melhor quando há tolerância de interesses díspares e quando há uma união em torno de temas transcendentais, como houve nos anos 1950 (mesmo com a Guerra Fria) e na redemocratização (1978-85).

- Que papel exerce hoje a classe média na democracia brasileira?

MÉRCIO: Em qualquer país do mundo, a classe média tem a função de dar condições e promover o incremento da produtividade da economia (aliviando a exploração do trabalhador), pela aplicação do conhecimento, da tecnologia, da linguagem e da filosofia (incluindo leis, ideologia e religião) dos tempos. Nas sociedades modernas é a classe média que controla o conhecimento (inclusive o ensino e a divulgação), a tecnologia, a elaboração de regras e normas e que tem meios à sua disposição para aplicá-las a bem da coletividade.

No Brasil, nossa classe média tem uma grave tendência para se proteger a si mesma e esquecer seus deveres fundamentais para com a coletividade maior. Ela nem consegue se dar conta da importância do Brasil, de sua História fabulosa (para ela é uma História horrível), da sua formação cultural mestiça extraordinária e dos seus potenciais humanos e humanistas. Isto tentei mostrar no meu livro “O Brasil Inevitável”. Não tendo essa noção de Brasil, ela só pensa em si mesma e termina exercendo muito mal seu papel de propulsor econômico e articulador do discurso coletivo. De certo modo, todo mal estar que vivemos atualmente se deve a essa classe média desorientada e enferma.

A classe média in toto continua a ser o principal protagonista da disputa esquerda/direita, tanto no Brasil quanto no exterior. É ela que pressente que pode perder muito de sua posição social com as mudanças tecnológicas e as consequências políticas que estão a caminho. Seu nervosismo advém dessa insegurança. O resultado é que está difícil encontrar um caminho de superação dessa terrível desavença interna.

“Heranças da escravidão, da servidão e do patrimonialismo que nos atormentam são comportamentos duros de superar”

A classe média ascendente e a classe média estacionada no tempo não querem negociar nem ceder qualquer posição. Faltam, nessa disputa, linguagem comum (despedaçada desde os anos 1970), ideias aproximativas (rompidas pelo pós-modernismo), reconhecimento histórico (arrasado pelo politicamente correto) e motivos transcendentais (educação boa para todos, responsabilidade universitária, renovação moral etc.) para provocarem diálogo e entendimento.

- O brasileiro tem um temperamento democrático? Como o nosso passado colonial português moldou esse temperamento? Em que medida esse passado facilita ou dificulta a consolidação de instituições democráticas no Brasil?

MÉRCIO: Muitos intelectuais brasileiros, inclusive antropólogos, acham que o brasileiro tem um temperamento não democrático; ao contrário, seria elitista e hierarquizante. Ou o cara se acha elite e despreza os outros; ou se considera humilde e se submete aos outros. Heranças da escravidão, da servidão e do patrimonialismo que nos atormentam. São comportamentos duros de superar.

Entretanto, o fato de termos tido escravidão e servidão não aconteceu sem resistências, desconfianças, desafetos e revoltas – e estes sentimentos se inseriram na alma do brasileiro. Todos os povos do mundo se formaram e passaram por essas mesmas vicissitudes e sentimentos e superaram suas desigualdades e injustiças.

Resta saber o que é necessário para superar o passado? Sua rememoração sofrida e autopenitente ou a busca pela superação na prática vivida? Muitos países estão passando pela primeira opção, como os Estados Unidos, e nisso a classe média brasileira o segue quase de olhos fechados. Aqui se ensaia black blocs, antifas, Black Lives Matter e Occupy Wall Street como se fôssemos papagaios imitando vozes dos donos. Vamos resolver, por exemplo nossa forma de preconceito racial pelo método americano ou há algumas boas razões para voltarmos a seguir o modelo brasileiro?

Um povo com tal grau de miscigenação pode se martirizar tanto pela escravidão que houve, como na América do Norte ou na África do Sul, ou deve ver-se por olhos de quem já tem um certo caminho andado para superar as desigualdades de ordem social e racial? E a diferença social tão larga e despudorada, como seria resolvida, se não pelo diálogo?

- Resumidamente, de que forma os clássicos “Cada Grande & Senzala”, “Raízes do Brasil” e “Formação do Brasil contemporâneo” ainda são úteis para explicar o Brasil contemporâneo?

MÉRCIO: Esses três livros representam três das quatro visões mais conhecidas que atuam e disputam a hegemonia político-cultural no Brasil. O primeiro livro representa o conservadorismo brasileiro que atribui o protagonismo da formação brasileira à sua elite portuguesa, branca, que foi capaz de criar uma nação mestiça e tolerante.

O segundo livro representa a ideia de que o Brasil formou uma classe média cordata e sensata, com laivos de liberalismo e socialismo de algibeira, que sabe articular um discurso nacional e tem paciência de que está acontecendo uma revolução lenta e progressiva.

O terceiro livro está na linha de que a economia determina a sociedade e que só por uma revolução comunista o Brasil poderia superar seus problemas.

Há uma quarta visão que delira, tanto pela esquerda quanto pela direita, que o Brasil precisa mudar tudo completamente! Só a revolução utópica ou a ditadura nos salvam!

Por fim, a quinta visão considera os valores dessas quatro visões como reais e inevitáveis na formação brasileira e busca fazer uma síntese que produziria uma visão mais abrangente, sintetizando elementos das demais visões e aberta para novas ideias a serem consideradas.

Em outras palavras, não dá para desacreditar no papel do português como elite desbravadora, nem da classe média buscando uma racionalidade, nem da luta de classes. Mas também não se deve deixar de lado o índio e o negro que formaram o povo e a cultura básica brasileira, que miscigenaram intensamente no corpo e na alma, que criaram uma moral, uma sacralidade e uma tolerância social próprias que têm muito a produzir para o Brasil.

Não dá para não reconhecer que vivemos em um mundo dominado pelo capitalismo, e que este mundo é melhor do que no passado foram o feudalismo e os impérios despóticos.

Muitos outros autores brasileiros e estrangeiros, desde Antonio Vieira e José Bonifácio, a Capistrano de Abreu, os autores já mencionados, Stefan Zweig, Darcy Ribeiro, Luiz Sergio Sampaio, Vilém Flusser e, por que não dizer, Joãozinho Trinta, viram essa formação cultural como um deslumbre. Eu penso sobre o Brasil baseado nessas contribuições.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]