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Se você não está enxergando uma escultura, não entende nada de arte.
Se você não está enxergando uma escultura, não entende nada de arte.| Foto: Divulgação

Uma obra do artista plástico italiano Salvatore Garau foi vendida em um leilão realizado na semana passada por 15 mil euros, cerca de R$ 93.000,00. Até aí tudo bem. O problema é que a obra em questão só existe na cabeça do artista. Trata-se de uma escultura “invisível”, de uma obra “imaterial”, intitulada “Io sono” (“Eu sou”). Salvatore Garau, 67 anos, é citado na Wikipedia como “um dos maiores artistas vivos”.

O mais engraçado é o discurso de enganação, criado por aqueles que se alimentam do sistema da arte, para justificar a obra. “Salvatore Garau se sente atraído pelo que os olhos não veem: ele quer explorar o que todos os sentidos conseguem fazer em conjunto”, escreveu um crítico em êxtase.

Oh!

“A obra encontra-se para além da matéria”, afirmou um galerista entusiasmado. “Garau quer tornar visível um pensamento de espaço inexistente, porque a ausência é a protagonista absoluta dos tempos que vivemos, a premissa que leva o artista a criar para além do físico. É com o tudo que o artista cria o nada”.

Oh!

Um jornalista especializado escreveu, embevecido: “O artista tenta explicar que o vazio não é sinónimo de opacidade. É caótico: implica um mundo de emoções, positivas e negativas, campos eletromagnéticos, tudo de acordo com o Princípio da Incerteza de Heisenberg, Prêmio Nobel da Física em 1932”.

Oh!

Etc.

Já o próprio Salvatore Garau foi além, ao defender sua criação: “É uma obra que está para além do corpo, da matéria”, declarou em entrevista à revista “Art Rite”. “A minha fantasia, treinada por toda a vida para sentir o que existe ao meu redor de maneira diferente, permite-me ver o que aparentemente não existe. O vazio não é nada mais do que um espaço cheio de energia. Quando decido expor uma escultura imaterial num dado espaço, esse espaço vai concentrar uma certa quantidade e densidade de pensamentos num ponto preciso, criando uma escultura que, pelo meu título, só vai assumir as mais variadas formas. Afinal, não moldamos um Deus que nunca vimos?”

Duas vezes oh!

O artista plástico italiano Salvatore Garau, autor da escultura invisível "Io sono"
O artista plástico italiano Salvatore Garau, autor da escultura invisível "Io sono"

O artista ressalta que sua obra não pode ser colocada (??) em qualquer lugar, mas deve estar localizada em um espaço livre de obstruções, cerca de 150 cm x 150 cm. Iluminação especial e controle de temperatura são opcionais, pois a peça não pode ser vista (lógico, ela não existe!). Essas instruções estão detalhadas no certificado de garantia, assinado e carimbado pelo artista, que o comprador receberá.

O que mais me espanta é que esse tipo de bobagem ainda aconteça em 2021. Já seria algo velho 100 anos atrás, quando “transgressões” desse tipo até faziam algum sentido no contexto de ebulição cultural e de contestação das convenções artísticas na Europa do entreguerras.

Aliás, se me permitem a propaganda, eu me dediquei ao tema no meu livro “A grande feira – Uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea”, lançado em 2009. Trata-se de uma investigação sobre como funciona o sistema de atribuição de valor no mercado da arte das últimas décadas, desde o final das vanguardas dos anos 70.

A capa do livro reproduz a obra “The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living”, do artista plástico britânico Damien Hirst. Em 2004, o tubarão mergulhado em formol foi vendido por 12 milhões de dólares ao administrador de fundos americano Steve Cohen.

(Dois anos depois, Cohen recebeu uma má notícia: o tubarão estava se decompondo. O pequeno alvoroço no mundo da arte foi logo abafado. Artista e colecionador negociaram a substituição do animal original, e não se falou mais do assunto. Utilizei essa imagem como metáfora para sugerir que a arte contemporânea é frágil e efêmera como um cadáver mergulhado em formol.)

Em “A grande feira”, examinei algumas obras que apontavam para a decadência da arte, entre elas uma exposição na qual um cachorro era amarrado em um poste até morrer de fome; um crucifixo afogado em urina; e um pote com fezes intitulado “Merda d’artista”. Todas essas obras de “arte” foram cercadas de discursos teóricos que, em tom de superioridade moral, basicamente chamavam de burro quem não conseguia captar a profundidade dos artistas.

(Um exemplo recente dessa dinâmica foi a vagina esculpida no solo da Zona da Mata pernambucana por uma artista brasileira, tema do meu artigo “A vagina de 33 metros e a “problematização” da arte nas redes sociais”.)

Como era de se esperar, o livro me custou algumas amizades no meio artístico, mas o fato é que ele estava certo: desde sua publicação, a arte contemporânea continuou andando em círculos, se alimentando de pequenas controvérsias artificialmente fabricadas por artistas, marchands, curadores, colecionadores, galerias e museus. É nesse contexto que se insere a notícia da escultura invisível de Salvatore Garau.

Não foi a primeira vez, aliás, que, à maneira do comediante Jerry Seinfeld, Garau criou uma obra sobre o nada. O artista já concebeu outras obras invisíveis, como “Buda em contemplação, expostas em uma praça de Milão – com fitas brancas coladas no chão para demarcar o local onde estaria sua arte – medida importante porque, sem as fitas, os imbecis que não entendem nada de arte seriam incapazes de perceber que havia uma obra ali:

E Garau anunciou esta semana que vai expor em Nova York outra obra sua, “Afrodite Piange”, que também é invisível.

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