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A problematização do sovaco, ou: deixem a Juma se depilar em paz!
| Foto: Divulgação

Embora eu não assista a novelas já há muitos anos nem me interesse pelo assunto, por algum motivo um desses algoritmos da internet me fez chegar a seguinte notícia: “Axilas: Depilação de Juma Marruá em Pantanal repercute nas redes. Entenda.”

(A propósito, acho muito esquisita essa mania de terminar os títulos das matérias com a palavra “Entenda”. O leitor, por acaso, é imbecil? É óbvio que ele pretende entender o que vai ler, não? Mas quem dera o problema do jornalismo que se pratica hoje fossem só os modismos e vícios de linguagem...)

Pois bem, segundo entendi, na semana passada a mocinha da novela “Pantanal” – a tal Juma, interpretada pela bonita atriz Alanis Guillen (ainda se pode escrever que uma atriz é bonita?) – protagonizou uma aguardada cena de amor, mas esta acabou incomodando muito a lacrosfera. Por quê? Porque ela teve a ousadia, o atrevimento de aparecer em cena com... as axilas depiladas, vejam vocês!

É muito fascismo. Cadê a censura do bem, que deixa passar um desaforo desses? Além disso, que horror, Juma costuma andar armada! Pura propaganda subliminar da bancada da bala. Não pode. Em uma época em que se luta pelo desarmamento da própria polícia, Juma tinha que se defender dos perigos da floresta com um livro nas mãos, não com uma espingarda!

Voltando às axilas. Uma espectadora vocalizou a revolta generalizada das mulheres progressistas em um post no Twitter, interpelando a Rede Globo: “A Juma tem axila depilada por quê? Se não convive nem consome a cultura do padrão de beleza? Quando a Globo vai bancar uma mulher com sovaco peludo?”

Outros posts indignados sobre o assunto foram:

“A axila de juma mais depilada que a minha onde ela da achando essa cera no meio dos matos kkkk”

“Eu queria era entender como a Juma no meio do Pantanal, sem energia elétrica nem nada, tem a axila mais bem depilada do que a minha.”

“A Juma com os sovacos lisinhos exige muito do bom senso. Querem vender uma mulher onça que não tem pelos, mas que até ontem nunca tinha usado xampu.”

“Vendo essa novela agora, essa Juma não era pra ser peluda? A axila está em dia!”

Etc

Sim, chegamos a este ponto: a problematização do sovaco.

A suposta falta de realismo da cena (Juma, vivendo isolada no Pantanal, não teria meios para se depilar) é apenas um pretexto para mais um surto lacrador. Ninguém, no fundo, está preocupado com o realismo, é tudo jogo de cena para, mais uma vez, tentar impor na base do grito uma agenda particular. Até porque a personagem vira onça e todo mundo acha normal. Mas axila depilada no Pantanal? Onde já se viu?

De qualquer forma, antes de problematizar as axilas a lacrosfera deveria fazer o que vive recomendando aos outros; estudar História. Os ativistas do sovaco ficarão chocados, mas a depilação não é uma invenção do capitalismo opressor heteronormativo.

Já no Egito dos faraós as mulheres se depilavam, usando uma cera fabricada com argila, sândalo e mel. A própria Cleópatra, empoderada como era, costumava banhar tiras de tecido ou pele de animal em cera quente de abelha, para se depilar. O hábito também esteve presente na Grécia Antiga e no Império Romano.

Eliminar os pelos já era prática comum, inclusive, no Brasil pré-Descobrimento. Tanto que chamou a atenção de Pero Vaz de Caminha uma característica das nativas, que ele  registrou devidamente na famosa Carta que enviou ao rei Manoel I: “Suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonham”, escreveu Caminha. Ou seja, muito antes da chegada do homem branco colonizado já se raspavam por aqui os pelos pubianos e das axilas, com espinhas de peixes-lixa.

Virou sinal de virtude exigir que a protagonista de uma novela tenha o “sovaco peludo". Que tempos.

Ora, nem no Egito, nem na Grécia, nem em Roma, nem no Brasil pré-1500 havia xampu e energia elétrica, muito menos capitalismo, mas as mulheres podiam tirar os pelos sem serem patrulhadas. Já a Juma, coitada, em pleno século 21, tem que deixar as axilas cabeludas por morar no Pantanal, só para corresponder às ideias tortas de certa militância. Aliás, não se trata aqui de preconceito contra a mulher pantaneira? Deixem a Juma se depilar em paz!

Vale lembrar também que a depilação é considerada hoje uma questão de higiene. Pelo menos é o que afirma o “Guia Prático de Condutas: Higiene Genital Feminina”, publicado pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo): o hábito de depilar evita a acumulação de fungos e bactérias causadoras de infecções, mau cheiro e irritação – o que também se aplica às axilas, naturalmente.

Mas não faltará quem argumente que fungos e bactérias fazem parte da natureza, e que a limpeza é opressora. Porque o ódio à higiene anda de mãos dadas com o ódio à beleza, à magreza, à elegância. A palavra de ordem hoje é destruir a tal “cultura do padrão”, porque corpos belos e magros ofendem quem não é bonito nem magro.

Nunca subestimem o poder do ressentimento, ainda mais quando ele se associa a uma agenda ideológica com o apoio da grande mídia. Morte à beleza! Escrevi sobre o assunto já em 2018, no artigo “Precisamos falar sobre belezafobia” - que, aliás, me rendeu algumas ameaças no Twitter.

Evidentemente, cada um faz o que quer com as próprias axilas e outras partes do corpo, e se uma mulher quer deixar seus pelos crescerem ninguém tem nada a ver com isso. Mas em nenhuma outra época – com exceção da retrógrada Idade Média, quando alguns hábitos de higiene eram considerados pecaminosos, e a mulher que se depilasse passava a ser considerada suspeita de bruxaria – mulheres foram criticadas por se depilarem.

Na nova Idade das Trevas em que estamos mergulhando, virou sinal de virtude e de luta pela democracia exigir que a protagonista de uma novela tenha o “sovaco peludo”. Peludas de todo o mundo, uni-vos contra a ditadura da depilação, contra a opressão estética, contra esse símbolo repulsivo do patriarcado capitalista: a axila lisinha. Que tempos. Que tempos.

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