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Luciano Trigo

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Geopolítica

Coisas que não te contaram sobre a Guerra da Ucrânia

É preciso entender os antecedentes da Guerra da Ucrânia para evitar mais destruição e sofrimento. (Foto: Joachim Schnürle/Pixabay)

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O economista e analista político americano Jeffrey Sachs está longe de ser um trumpista. Ao contrário, ao longo de sua carreira, ele serviu, em diferentes funções, a vários governos do Partido Democrata e se alinhou ao chamado campo “progressista” em temas como o ambientalismo e o desenvolvimento sustentável. Isso torna mais interessante o que Sachs vem dizendo reiteradamente em entrevistas, debates e conferências sobre a Guerra da Ucrânia.

De um “lugar de fala” insuspeito, ele quebra totalmente a narrativa ocidental hegemônica que, basicamente, equipara Putin a Hitler, faz de Zelensky um herói impoluto e aposta na continuidade da guerra.

Não se trata, evidentemente, de justificar a invasão da Ucrânia, nem tampouco de negar que Putin seja um ditador, mas de entender os antecedentes do conflito, as motivações da Rússia e a melhor maneira de lidar com a situação, de preferência evitando mais mortes, destruição e sofrimento.

Autor de best-sellers como “O fim da pobreza”, Sachs argumenta que a Guerra da Ucrânia, que completou três anos na semana passada, é resultado de uma longa escalada de tensões entre a OTAN e a Rússia, iniciada pouco depois da queda do Muro de Berlim. Ele vê o conflito como uma reação às ameaças aos interesses estratégicos e à segurança nacional da Rússia, não como um projeto expansionista de Putin. Ele está certo? Não sei, mas vale a pena entender o que ele diz.

Sachs não defende Putin, mas não o enxerga como um vilão. Sua análise busca as causas estruturais da guerra, que só terminará com negociações diretas entre os envolvidos, não com a exclusão da Rússia do cenário internacional, muito menos com o envio de mais armamentos à Ucrânia. Ele adota um realismo pragmático: o objetivo deve ser minimizar danos e interromper a carnificina.

O que apresento a seguir é um resumo das teses de Sachs em relação às origens e à cronologia das tensões que resultaram na guerra. Após ler os próximos parágrafos, você pode continuar torcendo por Zelensky ou Putin, mas certamente será uma torcida mais bem informada.

Tudo começou em fevereiro de 1990, durante as negociações para a reunificação da Alemanha. Naquela ocasião, diversos líderes ocidentais, incluindo o então secretário de Estado americano James Baker, garantiram a Mikhail Gorbachev (o coveiro da União Soviética) que a OTAN não se expandiria "nem uma polegada para o leste" (“Not one inch eastward”), caso ele aceitasse a reunificação.

A promessa foi quebrada. Nas décadas seguintes, os Estados Unidos adotaram uma agressiva política de ampliação da OTAN, deteriorando a relação entre a Rússia e a Europa Ocidental. Henry Kissinger, aliás, foi um dos que alertaram para os riscos dessa expansão.

Em 1999, a aliança absorveu a Polônia, a Hungria e a República Tcheca, contrariando os interesses russos. Cinco anos depois, mais sete países foram incorporados à OTAN, incluindo os três Estados Bálticos estratégicos: Estônia, Letônia e Lituânia, antigas repúblicas soviéticas.

Já em 2008, na Cúpula da OTAN em Bucareste, foi anunciada a meta de integrar a Ucrânia e a Geórgia à aliança militar, tornando o território russo ainda mais vulnerável militarmente. Essa declaração foi vista por Putin como uma ameaça direta à segurança da Rússia, e ele reagiu atacando militarmente a Geórgia.

Em 2014, protestos populares em Kiev levaram à derrubada do então presidente ucraniano Viktor Yanukovych, um aliado de Putin. Sachs afirma que os Estados Unidos e a União Europeia tiveram uma participação decisiva nesse episódio, apoiando grupos oposicionistas para derrubar o governo.

Não se trata de justificar a invasão da Ucrânia, mas de entender os antecedentes da guerra, as motivações da Rússia e a melhor maneira de evitar mais mortes, destruição e sofrimento

Como resposta, a Rússia anexou a Crimeia, onde já existiam forças separatistas pró-Rússia. Ele justificou a invasão com base em um referendo local e na necessidade de proteger sua base naval em Sebastopol.

Também em 2014, na região de Donbass, grupos pró-Rússia ocuparam prédios do governo e instituíram as autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk  e Luhansk. Houve conflitos armados entre os separatistas, apoiados pela Rússia, e o exército ucraniano. Apesar da assinatura, no ano seguinte, dos Acordos de Minsk, a região nunca foi totalmente pacificada.

Sete anos mais tarde, durante o Governo Biden, a Rússia exigiu garantias de que a Ucrânia não ingressaria na OTAN, mas os Estados Unidos rejeitaram a demanda, elevando ainda mais a temperatura. Finalmente, em fevereiro de 2022, Putin reconheceu oficialmente as duas repúblicas e usou isso como pretexto para justificar sua ofensiva militar contra a Ucrânia.

Também de forma bastante resumida, o que Jeffrey Sachs defende, nesse contexto?

Primeiro: que o fim da guerra passa por um acordo que garanta a neutralidade da Ucrânia e o fim da expansão da OTAN. Ele alerta que o envio à Ucrânia de armamento avançado pelos Estados Unidos, como aconteceu no apagar das luzes do governo Biden, pode levar a um conflito nuclear.

Segundo: que os Estados Unidos devem parar de interferir no governo ucraniano e em questões de segurança do continente europeu. A Europa precisa resolver seus problemas sozinha, sem implorar por ajuda americana a cada dificuldade. Neste ponto, aliás, há uma convergência notável entre as ideias de Sachs e o recente discurso de J.D.Vance em Munique.

Terceiro: Sachs não enxerga Zelensky como um líder independente, mas como um fantoche manipulado pelos Estados Unidos e pela OTAN. Ele lembra que a Ucrânia poderia ter assinado um acordo de paz bastante razoável, negociado em Istambul, na Turquia, já nos primeiros meses da guerra, mas Washington e Londres não deixaram.  

Ou seja, Zelensky preferiu permitir que a Ucrânia fosse usada como campo de batalha sangrento em uma “guerra por procuração” da OTAN contra a Rússia, que já custou a morte de 60.000 ucranianos, em uma estimativa modesta. Há quem fale em centenas de milhares.

Sachs também critica Zelensky por proibir partidos de oposição, fechar canais de mídia independentes e estender a lei marcial indefinidamente. Ele vê essas medidas como sinais de que Zelensky não é o líder democrático exemplar que a mídia ocidental apresenta.

Quarto: a OTAN precisa acabar, porque sua existência e expansão são fontes de instabilidade global. Segundo Sachs, a OTAN já perdeu sua razão de ser: a aliança foi criada em 1949 para conter a expansão da União Soviética. Com o colapso soviético em 1991, ela deveria ter sido dissolvida, como ocorreu com o Pacto de Varsóvia (a antiga aliança militar do bloco comunista).

Em vez disso, a OTAN se expandiu e passou a atuar como uma força militar global, sem um inimigo específico. Sachs vê a OTAN como uma ferramenta de domínio geopolítico dos Estados Unidos, usada para justificar intervenções militares e aumentar a influência americana na Europa.

Em vez de uma política agressiva de expansão contínua, Sachs propõe uma estratégia focada na diplomacia e na negociação, reconhecendo as legítimas preocupações de segurança da Rússia. Ele defende que o caminho para a paz passa por negociações, reconhecimento dos interesses estratégicos mútuos e um novo arranjo que garanta a segurança na Europa.

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