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Como a agenda da lacração joga contra a esquerda
| Foto: Pixabay

Três anos atrás, em setembro de 2017, durante o evento “Panorama da Arte Brasileira”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, um artista plástico apresentou uma performance na qual uma criança de quatro anos era estimulada a interagir fisicamente com um homem adulto nu, para deleite de uma plateia formada por adultos vestidos.

Um vídeo registrando trechos da performance viralizou nas redes sociais e despertou reações imediatas da sociedade. Foram tantas as manifestações de indignação de brasileiros comuns que o Ministério Público abriu um inquérito para investigar o eventual caráter criminoso da performance, por expor e constranger uma criança a uma situação percebida como repugnante e inaceitável pela imensa maioria das pessoas que viram as imagens.

A resposta do museu foi divulgar uma nota afirmando que as reações negativas à performance eram, vejam só, "resultado de desinformação, deturpação do contexto e do significado da obra" e lamentando “as interpretações açodadas e manifestações de ódio e de intimidação à liberdade de expressão que rapidamente se espalharam pelas redes sociais".

Os artistas e intelectuais que se manifestaram sobre o episódio seguiram o mesmo diapasão, acusando de ignorantes e defensores da censura as pessoas comuns que não entendiam nada de arte e não tinham capacidade para entender a beleza e a sensibilidade de se expor uma criança à nudez de um adulto.

O caso foi tema de um debate em um programa de variedades na TV, no qual todos os participantes repetiram, previsivelmente, o mesmo discurso. Para justificar o injustificável, citaram a nudez do Davi de Michelangelo, citaram as praias de nudismo, citaram hábitos e costumes da Dinamarca.

O que não estava previsto era a intervenção de uma simpática senhora da plateia, dona Regina, que lembrou aos debatedores o óbvio: tratava-se de uma criança. Façam a arte que bem entenderem, aliás nudez não choca mais ninguém, mas a infância é uma fronteira que não pode ser ultrapassada. Na época, escrevi uma “Carta aberta à dona Regina”, da qual destaco os trechos abaixo:

“Com seu jeito simples, o que a senhora fez foi revelar o abismo crescente que se cava entre os brasileiros comuns e a classe que pretende falar em seu nome. Esses brasileiros não se chocam com a nudez nem estão interessados na arte das elites pensantes e falantes, até porque têm mais o que fazer. Mas, para esses brasileiros, a infância é uma fronteira que não pode ser ultrapassada. O que a senhora fez foi vocalizar o desconforto do Brasil real diante desse limite que foi desrespeitado.

“A reação dos apresentadores foi reveladora desse abismo. Diante de uma idosa que poderia ser mãe ou avó deles, as expressões e olhares foram de perplexidade, ódio, desprezo, deboche. E a senhora respondeu com um olhar de bondade, sereno e doce. Ao “Não vou nem comentar” emitido com ar de desdém e superioridade moral [por uma participante do debate], a senhora respondeu com a paciência de quem não se incomoda em explicar o óbvio: o choque não vinha da nudez do adulto, vinha da exposição da criança. E o fato de a menina estar acompanhada da mãe não era um atenuante da situação: era um agravante. (...)

“Não sei se esses intelectuais das redes sociais não entendem ou se fingem que não entendem nada disso. O mais irônico, Dona Regina, é que eles parecem não se dar conta da campanha involuntária que estão fazendo, ao jogarem no colo da direita a bandeira da defesa da infância – como já jogaram, aliás, a bandeira do combate à corrupção. Com progressistas agindo dessa maneira, os conservadores agradecem.”

Comentando meu texto, um amigo discordou e me disse que eu estava sendo conservador e careta. Respondi: “Continuem mexendo com crianças e vocês vão eleger Bolsonaro no primeiro turno”. Estávamos, repito, em setembro de 2017, quando a vitória de Bolsonaro não era vislumbrada nem nos piores pesadelos da esquerda.

Há um mecanismo psicológico curioso em curso: pessoas massacradas e ameaçadas de cancelamento abaixam a cabeça e se submetem à patrulha. É uma espécie de Síndrome de Estocolmo do cancelamento

Eu me lembrei do episódio de dona Regina ao me deparar com uma recente postagem de um youtuber famoso, que afirmava o seguinte:

“Tweets óbvios que todo mundo sabe (ou deveria):

Mulher trans é mulher. (...)

Se você não sabe disso em 2020, você precisa sair da bolha hétero e conversar com mais gente.”

(Parêntesis: por causa de uma brincadeira, o mesmo blogueiro havia sido acusado de transfobia pouco tempo antes dessa postagem. Há um mecanismo psicológico curioso em curso: as pessoas massacradas e ameaçadas de cancelamento abaixam a cabeça e se submetem à patrulha. Aconteceu recentemente com uma historiadora, a quem desautorizaram e mandaram calar a boca por não ter “lugar de fala” para escrever sobre determinados temas – e ela concordou e pediu desculpas. É uma espécie de Síndrome de Estocolmo do cancelamento).

Voltando ao tweet lacrador: a língua portuguesa é viva, e o sentido das palavras é flexível, mas a biologia e a natureza não são. Cada um opta pela definição de mulher que julgar mais adequada, mas a natureza seguirá indiferente. Por óbvio, existem diferenças biológicas e anatômicas entre quem nasce mulher e quem nasce homem e decide assumir uma identidade de gênero feminina que nenhum artifício de linguagem e nenhuma sociologia podem mudar. (Atenção, nada contra os trans: pessoas adultas devem ser livres para fazer suas escolhas, com responsabilidade e sem sofrer discriminação.)

Mas o propósito aqui não é criticar o youtuber, nem iniciar um debate sobre gênero e sexualidade, ou sobre as distintas definições (biológicas, psicológicas, socioculturais etc) de homem e mulher. Vou me ater ao caráter imperativo e impositivo da postagem, porque reconheci ali o mesmo tom intransigente e debochado de superioridade moral, a mesma atitude arrogante com que intelectuais e artistas progressistas fizeram cara de nojinho para dona Regina e defenderam a performance artística que expôs uma criança – sem entender que, com isso, estavam fazendo campanha involuntária para Bolsonaro e a direita conservadora.

Essa atitude revela que a esquerda ainda não entendeu que, ao fazer pouco dos valores da maioria dos brasileiros, está se isolando do país real e perdendo cada vez mais apoio da população. Está, também, prestando um desserviço a bandeiras legítimas das minorias, já que essas causas passam a ser vistas como monopólio de um campo político hoje minoritário e desmoralizado. Porque, vamos combinar, quando se parte para o sectarismo e a perseguição, o objetivo não é buscar o entendimento e o consenso sobre direitos, mas usar minorias para atacar, desqualificar, calar e abater brasileiros comuns apontados como inimigos pelo simples fato de defenderem valores conservadores.

O brasileiro comum percebe que, no fundo, é disso que se trata: da apropriação e manipulação de bandeiras legítimas – os direitos das minorias, a liberdade de expressão, o combate ao preconceito – por um campo político que já se declarou capaz de “fazer o diabo” pelo poder. Transformadas em ferramentas de um embate ideológico, essas bandeiras ficam contaminadas, por associação, pelo colapso moral da esquerda brasileira associada ao lulopetismo. Aos olhos do brasileiro comum, o que deveria ser luta legítima e construtiva pela igualdade de direitos e pela união de todos os brasileiros se torna guerrilha lacradora focada em sabotar e destruir.

O brasileiro comum percebe que, no fundo, é disso que se trata: da apropriação e manipulação de bandeiras legítimas – os direitos das minorias, a liberdade de expressão, o combate ao preconceito – por um campo político

Foi esse brasileiro comum – que está cansado de ser chamado diariamente de burro e fascista e de ser calado na base do grito e do constrangimento – que elegeu e pode reeleger Bolsonaro. Esse brasileiro comum ficou indignado quando viu imagens de uma criança sendo exposta ao contato com um adulto nu em uma performance artística. E fica indignado quando intelectuais do Youtube e artistas lacradores tentam enfiar goela abaixo, por exemplo, a ideologia de gênero, como se fosse um fato consumado e algo óbvio que só os burros e idiotas não aceitam.

Esse brasileiro comum fica indignados, também, quando professores ensinam aos seus filhos em sala de aula que eles devem experimentar de tudo antes de decidir qual será sua orientação sexual – e os pais que não acharem isso muito bonitinho e natural são nazistas e genocidas. Pior ainda se forem famosos: a patrulha da cultura do cancelamento está sempre alerta para esfolar e massacrar quem não adere incondicionalmente à sua agenda. Porque quem discorda do pensamento único é gado e imbecil.

Em vez de tentar construir pontes com esse brasileiro comuns e reconhecer que sua estratégia está fracassando, o campo progressista dobra a aposta e se entrincheira no cercadinho ideológico da mídia e da academia. A esquerda opta, assim, por viver em uma realidade alternativa, na qual ela tem o poder de decidir por decreto que a exposição de uma criança ao contato com um adulto nu é arte, ou que não existem diferenças entre trans e mulheres. Eles falam e escrevem com a autoridade de seres iluminados que determinam o que é óbvio, o que é certo ou errado, o que é bom ou mau para o restante da população.

Má notícia para eles: o Brasil real é muito diferente do Brasil das bolhas da academia, da classe artística e das redes sociais: nos costumes, o Brasil real é majoritariamente conservador. Nesse contexto, para ter chances mínimas de sucesso, qualquer luta ligada a mudanças na moral e no comportamento deveria focar na construção de pontes, não de muros. Não será no grito e no deboche, nem constrangendo e desqualificando a maioria da população que isso irá mudar. Ao contrário: táticas de confrontação e violência verbal só servirão para acirrar ainda mais as diferenças, em vez de contribuir para o consenso.

Não sei qual foi o real peso da pauta progressista e lacradora nos costumes na eleição de 2018, mas seguramente algum peso teve. Mas nem a mídia, nem a inteligentzia (ou a burritzia), nem a turma da lacração nem a esquerda em geral reconheceram (ou sequer entenderam) isso. No passado recente, escrevi mais de uma vez que, enquanto a esquerda brasileira teimar em se associar ao lulopetismo, a direita só fará crescer – e os resultados das eleições de 2016 e 2018 foram confirmações eloquentes dessa tese. Hoje a minha intuição é que, quanto mais a esquerda tentar impor na base do grito pautas transgressoras que contariam os valores da maioria da população, mais ela se distanciará do Brasil real, e pior será o seu desempenho nas urnas – e as pesquisas sugerem que a esquerda vai fracassar rotundamente nas eleições municipais que se aproximam. Continuem agindo assim e, mais uma vez, a direita e os conservadores só terão a agradecer.

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