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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Pacificação

Da Lei da Anistia à Lei Clezão

Cartaz em defesa da Anistia, em 1979. (Foto: Acervo CEDEM - UNESP/Arquivo Nacional)

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No dia 27 de junho de 1979, estávamos em plena ditadura militar. Naquele dia, o general João Batista de Figueiredo, em seu primeiro ano de mandato, encaminhou ao Congresso Nacional o projeto que resultaria na Lei da Anistia, elaborado pela sua equipe.

A mensagem entregue por Figueiredo ao presidente do Senado, Petrônio Portella, dizia: “A anistia é um ato unilateral de Poder, mas pressupõe, para cumprir sua destinação política, [que] haja, na divergência que não se desfaz, antes se reafirma pela liberdade, o desarmamento dos espíritos pela convicção da indispensabilidade da coexistência democrática. A anistia reabre o campo de atuação política, enseja o reencontro, reúne e congrega para a construção do futuro e vem na hora certa”.

A mensagem terminava assim: “Este, Senhores congressistas, o projeto de anistia que (...) envio à consideração de Vossas Excelências, na convicção de que pratico um ato significativo e profundo, o ato histórico de anistia, com a mesma confiança com que, na informalidade da vida cotidiana, estendo a mão a todos os brasileiros.”

O projeto foi discutido e aprovado em poucas semanas. Já no dia 29 de agosto daquele ano, foi promulgada a Lei 6683, a Lei da Anistia.

Não foi um movimento espontâneo. Já em 1975, mães, mulheres e filhas de presos e desaparecidos criaram o Movimento Feminino pela Anistia. Outros comitês foram criados, pedindo a libertação dos presos e a anulação de todas as penas decorrentes de manifestações de oposição ao regime.

No ano seguinte, no velório de João Goulart, o caixão do presidente deposto em 1964 foi coberto por uma faixa com a palavra “Anistia”. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também pressionavam o governo pelo perdão aos presos e exilados políticos.

Não foi uma lei perfeita, mas uma lei necessária. O próprio “Movimento dos Artistas pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” divulgou uma carta aberta em que fazia diversas ressalvas ao texto proposto. Mas reconhecia:

“... este não é o momento em que se devam reacender divergências. E nem mesmo perguntar – por mais evidente que seja a resposta – quem atirou a primeira pedra.

É o momento vital de falar, de gritar, em nome dos mais elementares princípios de respeito humano, aos sentimentos cristãos:

Chega de rancores!

Chega de ódio!

Paz!”

Perceba o leitor o seguinte: ainda hoje é possível travar um debate interminável e apaixonado sobre a justiça ou a moralidade de uma lei que anistiou terroristas, de um lado, e torturadores, de outro. Tortura e terrorismo são dois crimes que precisam ser abominados por qualquer pessoa decente. Mas não é este o ponto que vou abordar aqui.

O que quero destacar é a percepção que houve naquele momento, tanto por parte do governo quanto por parte da esquerda, de que o país estava cansado de ódio. Eram necessários gestos de pacificação. A Anistia era reconhecida por todos os atores envolvidos como um passo indispensável para o retorno à coexistência pacífica, no caminho para a redemocratização.

Talvez a mesma percepção se faça necessária hoje, 46 anos depois. Tramitam, na Câmara e no Senado, dois Projetos de Lei que concedem anistia aos manifestantes envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023. Ainda não há uma data definida para a votação, mas a pressão da sociedade e de parlamentares da oposição está aumentando.

Brasileiros comuns, sem antecedentes criminais, que nunca portaram uma arma, estão sendo condenados a penas que chegam a 17 anos de prisão. Cada vez mais se dissemina o sentimento de que, na imensa maioria dos casos, são prisões e sentenças injustas, exageradas, desproporcionais.

Professoras aposentadas, vidraceiros, caminhoneiros, pastoras, pais de família e mães de crianças pequenas já foram condenados ou estão aguardando julgamento na prisão, já há dois anos, enquanto tantos criminosos são postos em liberdade, todos os dias. A expressão “órfãos de pais vivos”, que se refere aos filhos dos manifestantes presos, se tornou de uso corrente até em conversas de bar.

Se faltar sentimento cristão, que não falte capacidade de cálculo político. Assim como em 1979, a Anistia de 2025 pode reduzir tensões, melhorar a imagem do governo e iniciar um necessário processo de pacificação do país

Que ninguém se iluda: isso está incomodando muito o brasileiro comum. E não parece uma atitude sábia, nem prudente, nem cristã, por parte dos três Poderes da República, ignorar esse sentimento coletivo.

Neste domingo, 16/3, pela primeira vez desde 1979, ocorrerão manifestações em diversas cidades brasileiras em defesa da anistia, entre outras reivindicações. Independente do tamanho das manifestações, pode ser considerado normal, em uma democracia, o povo ir às ruas pedir anistia a presos políticos?

Guardadas as muitas diferenças, 1979 e 2025 são dois momentos semelhantes em um ponto essencial: na necessidade de o país voltar à normalidade, à coexistência democrática, ao exercício pleno da liberdade de expressão. A própria estabilidade política depende disso. Um país no qual o povo sente medo de falar e se manifestar não tem a menor possibilidade de dar certo.

Se faltar sentimento cristão, que não falte capacidade de cálculo político. Capacidade de cálculo que, aliás, não faltou ao general Figueiredo. Ele entendeu que a Anistia era uma necessidade e, mal ou bem, conseguiu administrar de maneira pacífica a transição do país para a democracia, com a devolução do poder aos civis no final de seu mandato.

Assim como em 1979, a Anistia de 2025 pode reduzir tensões, melhorar a imagem do governo e iniciar um necessário processo de pacificação. No mínimo, servirá para evitar que parte do governo e do Judiciário continuem sendo vistos como agentes e instrumentos de perseguição política. Certa ou errada, esta é hoje a percepção de uma parcela significativa de brasileiros.

A nova Lei da Anistia já está sendo chamada de Lei Clezão, em homenagem ao manifestante Cleriston Pereira da Cunha, morto na Papuda em 20 de novembro de 2023, enquanto aguardava julgamento. Em função de seus problemas de saúde, Clezão deveria ter sido julgado em liberdade provisória – recomendação feita pela própria PGR – Procuradoria Geral da República. Mas morreu na prisão.

A invasão e depredação de prédios públicos em 8 de janeiro foi um episódio lamentável, é necessário dizer. Mas foi reflexo de um momento de grande turbulência política no Brasil. Essa página precisa ser virada.  

Até porque protestos similares no passado, muito mais violentos, como o que aconteceu durante o governo de Michel Temer em 24 de maio de 2017, com a explosão de bombas em Ministérios e quebra-quebra generalizado, não resultaram em nenhuma prisão duradoura.

Mas mais de 1.400 manifestantes do 8 de janeiro foram presos, e centenas já foram condenados a penas severas. Isso gera a impressão de um viés político nas condenações e de seletividade na aplicação da lei.

Pesquisas recentes indicam que a Anistia é apoiada pela maioria dos brasileiros e está ganhando força entre os parlamentares, tanto na Câmara quanto no Senado. Em algum momento, ela precisará ser votada.

Mas, se a Lei Clezão for aprovada no Congresso, a história não termina. Resta saber se haverá veto ou anulação por parte do Executivo e do Judiciário. No primeiro caso, os parlamentares podem derrubar o eventual veto do presidente, o que o obrigará a sancionar a lei.

No segundo caso, o STF pode declarar a lei inconstitucional. Mas isso reforçaria a imagem de ativismo e politização do Supremo, aumentando exponencialmente a tensão entre os Poderes e a insatisfação da população com o Judiciário, que já não é pequena. Além disso, o Congresso poderia reagir com PECs para limitar o poder do STF, o que envenenaria ainda mais o ambiente no país.

Não para desfazer divergências, o que seria impossível, mas para desarmar espíritos e fortalecer a democracia, algum grau de conciliação nacional é essencial. A anistia aos presos do 8 de janeiro pode ser o primeiro passo nesse sentido. Ela não significaria impunidade, mas o início de um retorno à normalidade, à razoabilidade, à proporcionalidade.

Como reflexo da vontade popular, seria uma escolha política voltada para a pacificação de uma sociedade que está cada vez mais dividida, ressentida, insatisfeita e amedrontada. É preciso gritar novamente: chega de rancores, chega de ódio. Paz.

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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