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Felacrapá: o Festival de Lacração que Assola o País
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Em 1966, o cronista carioca Sérgio Porto lançou “Febeapá - O Festival de Besteira que Assola o País”. Assinado com o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, o livro reunia textos publicados originalmente no jornal “Última Hora”.

Eram crônicas que expunham situações absurdas ou ridículas do Brasil dos primeiros anos do regime militar, mas não eram textos exatamente políticos: os personagens de “Febeapá” eram pessoas comuns, que figuravam em notícias incomuns publicadas nos jornais – como a turista russa detida no Aeroporto do Galeão por exibir um volume estranho sob o vestido, tema da crônica “Respeitem ao menos a região glútea!”; ou o prefeito de Petrópolis, município da região serrana do estado do Rio de Janeiro, que baixou um decreto regulamentando os banhos de mar na cidade.

“Febeapá” fez tanto sucesso que ganhou mais dois volumes, em 1967 e 1968 (ano da morte precoce do autor, aos 45 anos). Mas, se vivo fosse, Sergio Porto teria no Brasil de 2020 material de sobra para escrever um volume novo por semana. O título teria que ser diferente: algo como “Felacrapá: o Festival de Lacração que Assola o País.

A seguir, uma seleção de assuntos que poderiam ser abordados pelo cronista e figurar como verbetes do Felacrapá - todos extraídos do noticiário das últimas semanas:

1) Ovulário

De 1 a 5 de agosto a cidade de Jacobina, na Bahia, foi cenário de um acontecimento histórico: a realização de um ovulário. É tipo um seminário, mas como, etimologicamente, "seminário" e "sêmen" têm raízes comuns, e como o evento era exclusivo para mulheres, criou-se esse novo vocábulo como forma de resistência ao patriarcado hetero-normativo e ao machismo estrutural da nossa sociedade.

Mas tem um problema aí: a palavra “ovulário” não revelaria um preconceito estrutural contra as “mulheres que não ovulam”? Por uma questão de lógica, o evento deveria ter sido cancelado pela militância LGBTQQICAPF2K+ (“Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis, Queer, Questionando, Intersexo, Curioso, Assexuais, Pan e Polissexuais, Aliados, Two-spirit e Kink”; se você não entendeu alguma coisa, pergunte na seção de comentários). Afinal de contas, a escritora J.K.Rowling foi cancelada por sugerir o uso da palavra “mulheres” no lugar de “pessoas que menstruam”.

2) Obesidade

Há poucas semanas, Paola Carosella – empresária, chef de cozinha e jurada do programa “Master Chef” - foi cancelada porque disse que comida processada faz mal e provoca obesidade. Ou seja, ela apenas disse o óbvio. Mas foi o que bastou para provocar a ira dos lacradores de plantão, que acusaram Paola de... gordofobia.

É isso mesmo: a turma do cancelamento decretou que está proibido combater a obesidade. É apenas um detalhe insignificante que este seja um grave problema de saúde pública, um fator de risco associado a diversas doenças, incluindo a Covid-19. Hoje o compromisso com a lacração é mais importante que a saúde.

A propósito, Paola também foi cancelada pelos militantes veganos, que não gostaram de suas críticas aos nuggets de papelão da KFC, produzidos por impressoras 3D sem “sofrimento animal”.

(No tópico alimentação, aliás, foi cunhada uma nova expressão: “nutricídio”. Trata-se do “genocídio alimentar” que “surge a partir do contexto capitalista hegemônico de produção e distribuição dos alimentos” e “vem acompanhado do apagamento de povos e culturas”, através da “mudança alimentar de suas culturas pela inserção de uma alimentação colonialista”.)

3) Xadrez

O milenar jogo de xadrez vem sendo acusado de racismo, porque, segundo suas regras, o primeiro lance é sempre das peças brancas. Por incrível que pareça, o assunto foi levado a sério por outrora respeitados veículos de comunicação, a ponto de ter provocado comentários de dois ex-campeões mundiais. Anatoly Karpov declarou: “Um período de total insanidade começou”. Já Garry Kasparov foi mais irônico: “Se você está preocupado com isso, por favor jogue Go [jogo de tabuleiro chinês], onde as pretas jogam primeiro, em vez de parecer um tolo”.

O enxadrista australiano John Adams postou no Twitter que recebeu uma ligação de um produtor da rádio ABC (pública), perguntando se ele queria participar de um debate sobre o tema. Ele se recusou a participar e criticou a rádio por desperdiçar o dinheiro do contribuinte com "tópicos irrelevantes" e um “debate ridículo”.

4) Gatilho

No último Dia dos Pais, uma jovem postou em uma rede social um áudio fofo do pai lhe desejando um bom dia. Logo apareceu uma moça pedindo que ela apagasse o post. Estabeleceu-se o seguinte diálogo, que explica o motivo:

“Mana, apaga isso, é um gatilho muito forte, por favor” [emoji chorando]

“Como assim??”

“5,5 milhões de crianças não têm pai no registro no Brasil, sem falar as outras que têm o pai no registro mas o pai é ausente. A gente ver uma imagem dessas dói muito. E você, com uma quantidade razoável de seguidores, devia pensar nisso antes de postar algo. Falta de empatia total”.

Não foi um caso isolado. Inúmeros posts de pessoas enaltecendo os pais foram criticados com comentários do tipo “Pena que não é todo mundo que tem pai, né?”. Mas, por analogia, as pessoas que fizeram comentários assim também deveriam se abster, para não magoar os milhões de brasileiros que não têm acesso a uma conta no Twitter. O gatilho é muito forte, dói muito.

5) Matemática

Laurie Rubel, uma professora de matemática no Brooklyn College, em Nova York, postou no Twitter que a equação 2 + 2 = 4 “cheira a patriarcado da supremacia branca”. O tweet de Rubel foi apoiado e repostado por vários acadêmicos americanos. Segundo esses acadêmicos, a verdade objetiva da matemática é uma “construção social”.

Uma rápida pesquisa no Google mostra que no Brasil essa moda também está pegando: abundam artigos sobre “matemática humanizada”, ou associando a matemática à segregação de classe, raça e gênero etc. Em breve os estudantes aprenderão nas aulas de matemática que saber lacrar é mais importante que saber fazer conta. (Sérgio Porto poderia batizar essa crônica de “Respeitem ao menos a matemática!”).

6) Índex

Índex era a lista oficial dos livros considerados nefastos e proibidos pela Inquisição (o Index Librorum Prohibitorum foi publicado pela Santa Sé em 1559, durante a Contra-Reforma da Igreja Católica, e só foi extinto em 1966, pelo Papa Paulo VI). Mas parece que os defensores da democracia querem retomá-lo, determinando quais livros ou filmes podem ser lidos e vistos, e quais devem ser cancelados.

Sinal do gosto dessa turma pela censura é uma revista feminina ter publicado recentemente um índex de palavras e expressões da língua portuguesa que devem ser abolidas do uso quotidiano, entre elas:

- “Mal-amada” (“...dá a entender que uma mulher é feliz, plena e de bem com a vida se está tendo relações sexuais”);

- “Língua materna” (“...a expressão reforça o papel da mulher perante a sociedade patriarcal: o de ser a responsável pelo cuidado da casa e dos filhos”);

- “Criado-mudo” (“...o termo usado para nomear o móvel que fica ao lado da cama surgiu de uma das tarefas que os escravos eram obrigados a realizar: segurar objetos para os seus senhores”).

Volta e meia, outras palavras e expressões vêm sendo acrescentadas ao Index Lacrorum Prohibitorum. Um caso recente foi “tomara-que-caia” (vestido ou blusa sem alças), expressão que os inquisidores do bem querem banir da língua, por considerá-la “machista”.

Por engraçado ou ridículo que possa parecer, cada episódio acima expõe a natureza doentia da guerra cultural em curso no nosso país. Encerro com um episódio que envolveu, na semana passada, a cantora Marilia Mendonça, que fez durante uma live um comentário bobo sobre um músico da sua banda que teria ficado uma “mulher trans”.

Como era de se esperar, a cantora foi massacrada pela turma do ódio do bem. Mas o que me chamou a atenção foi o caráter preconceituoso dos comentários: “Marília é uma gorda escrota; “Gorda imunda”; “Gorda só fala m**** mesmo”; “Gorda e chifruda”; “Gorda fazendo gordice”.

Ou seja: fazer uma brincadeira com trans não pode. Mas ofender uma cantora por ser gorda está liberado (isto é, menos para a chef Paola Carosella, acusada de gordofobia por ter criticado alimentos processados). Isso porque, do alto da sua superioridade moral, a esquerda-lacração tem licença especial para odiar, ofender e agredir quem bem entender: é o poder do lacre. Tempos muito estranhos.

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