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Fukuyama reconhece que a História não acabou
| Foto: Divulgação

Em seu famoso livro “O fim da História e o último homem”, lançado em 1992 (e baseado por sua vez em um polêmico artigo de 1989, publicado na revista The National Interest), o cientista político – e antigo assessor de Ronald Reagan – Francis Fukuyama afirmava que, após a queda do Muro de Berlim e a extinção da União Soviética, a democracia liberal e o capitalismo de mercado estavam consolidados não apenas como receita inescapável de sobrevivência para os países do Leste europeu, em vias de redemocratização, mas também como destino inexorável da humanidade.

Na essência, ainda que seu livro tenha outros méritos, a tese central de Fukuyama foi cabalmente desmentida pelo tempo: os atentados às Torres Gêmeas em 2001 e a crise financeira global de 2008, para só citar dois exemplos, bastariam para desacreditar a ideia do fim da História. Não somente a História não acabou, como a democracia liberal e o capitalismo de mercado estão sendo cada vez mais atacados, em diferentes frentes.

Longe de estarem garantidos, o Estado de direito, a proteção das liberdades individuais, a igualdade perante a lei e o livre mercado são hoje rotineiramente atropelados não apenas por ditaduras caricatas da América Latina, como Venezuela e Cuba, mas também por governos das democracias mais desenvolvidas e ricas do mundo, como os Estados Unidos e diferentes países europeus.

Já no Brasil, instituições que deveriam ser fiadoras da democracia se comportam como ferramentas do ativismo político e cabos eleitorais, perdendo credibilidade junto ao povo e reforçando perigosamente a divisão da sociedade entre “nós” e “eles”. A liberdade de expressão acabou: pessoas são abertamente perseguidas e mesmo presas por crime de opinião – ironicamente, não graças ao governo acusado de fascismo pelo campo derrotado nas urnas, mas por uma parcela do próprio Poder Judiciário, que age como partido de oposição.

Pois bem, passadas três décadas do lançamento de “O fim da História e o último homem”, Francis Fukuyama lançou em abril nos Estados Unidos um novo livro, Liberalism and its discontents (Liberalismo e seus descontentes, em tradução livre). Em uma espécie de autocrítica (a evocação no título a um ensaio de Freud, A civilização e seus descontentes, traduzido no Brasil como O mal-estar da Civilização, é sugestiva), Fukuyama agora acredita que o liberalismo não foi capaz, nas últimas décadas, de corresponder às expectativas criadas, em termos de justiça social.

Mais uma vez ele se equivoca. Falando da sociedade americana, ele atribui a responsabilidade pela evidente decadência dos Estados Unidos à ação de dois polos contrapostos: o neoliberalismo, à direita, e a “teoria crítica”, à esquerda. É o viés da simetria: a tendência a enxergar como equivalentes os males causados por ideologias opostas.

(Esse viés, aliás, faz muita gente no Brasil justificar o voto nulo ou em branco com o argumento de que Lula e Bolsonaro são igualmente ruins, como se um fosse a imagem do outro refletida no espelho. Não são. Há sempre um mal menor, e escolher o mal menor não significa defender entusiasmadamente a alternativa menos pior, mas pragmaticamente evitar que o alternativa pior prevaleça. O nojinho de votar no menos pior não livrará ninguém das consequências potencialmente trágicas da vitória do pior).

Fukuyama trai assim sua própria visão anterior: a de que os problemas comumente atribuídos ao capitalismo por seus detratores – como a violência, a destruição do meio-ambiente, a miséria etc – não são resultado dos limites das democracias liberais, mas da sua incompleta implementação. Quem pode afirmar, por exemplo, que já houve um governo realmente liberal no Brasil? Estamos sempre à espera de um choque de capitalismo que nunca vem, sempre amarrados ao peso da burocracia e do Estado paquidérmico.

Bem, Fukuyama agora critica os “excessos” do capitalismo e do pensamento neoliberal e defende que os mercados devem ser regulados pelo Estado, com o argumento falacioso de que a eficiência econômica não pode ser o único objetivo de uma sociedade. É óbvio que não, mas não decorre daí que a solução seja um Estado maior, nem muito menos que um Estado maior seja mais eficiente na promoção da justiça social e da geração de empregos que a liberdade de empreendimento.

Por outro lado, Fukuyama também ataca a “política do ressentimento” da agenda da nova esquerda, centrada nas pautas identitárias de militantes progressistas que enxergam opressão em toda parte e se definem pela contestação a ideias vagas como o “sistema”, o “patriarcado” e a “branquitude”, que seriam elementos constitutivos da democracia liberal.

O autor critica o “subjetivismo radical” dessa agenda e a fragilidade dos estudos acadêmicos da teoria crítica da raça, por exemplo, que reduz todos os problemas do mundo ao confronto entre brancos privilegiados e minorias étnicas exploradas e oprimidas – o que leva a absurdos como afirmar que Anne Frank, a menina judia que morreu em um campo de concentração nazista, foi beneficiada pelo “privilégio branco", tema que abordei no artigo “Anne Frank cancelada e outros sinais de que o mundo acabou”.

No final das contas, a tese de Fukuyama é a de que a direita e a esquerda se retroalimentam: as agendas progressistas relacionadas a gênero, raça e orientação sexual estariam estimulando o crescimento de uma direita decidida a enfrentar o que percebe ser um ataque a suas tradições culturais e religiosas. Não deixa de ser verdade, mas de novo Fukuyama banca o isentão, sem tomar partido.

Mais interessante é a análise que o autor faz de aspectos da geopolítica internacional, como a aproximação entre a China e a Rússia, que pode marcar o início efetivo de uma nova ordem mundial (a depender do comportamento dos Estados Unidos). Fukuyama acredita que a etapa seguinte à invasão da Ucrânia pela Rússia será a invasão de Taiwan pela China. A ver.

Mas ele reconhece: “Hoje a maior fonte de fraqueza dos Estados Unidos é o grau jamais visto de polarização política em um país cada vez mais partido. A política externa, especialmente, carece do mínimo de consenso entre democratas e republicanos, crucial para a defesa de uma ordem global democrática".

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