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“Triunfo da morte”, pintura de Pieter Bruegel (circa 1562)
“Triunfo da morte”, pintura de Pieter Bruegel (circa 1562)| Foto: Reprodução

A tese defendida no livro “Violência e a História da desigualdade”, do economista e historiador Walter Scheidel, da Universidade Stanford, é ousada: somente a violência diminui a disparidade entre ricos e pobres.

Ousada e errada.

Ao longo de quase 500 páginas, Scheidel tenta elaborar uma espécie de História dos mecanismos que moldaram a distribuição de renda no mundo, da Idade da Pedra aos nossos dias. Ele reúne uma profusão de dados estatísticos para fundamentar sua teoria de que a desigualdade só diminui na base de guerras, revoluções, colapsos d Estados e pandemias – que seriam os quatro grandes “niveladores” da História, os o s quatro cavaleiros do Apocalipse.

Para o autor, o fato de esses niveladores deixarem por onde passam milhões de mortos e um rastro de destruição e sofrimento parece ser apenas um detalhe, irrelevante diante de consequências positivas como a redução do abismo social entre os detentores de grandes fortunas e as pessoas comuns, ou o surgimento de uma nova ordem social.

Scheidel parece narrar com particular prazer o sofrimento das elites nesses momentos disruptivos da História – como na derrubada do Império romano, quando guerras e doenças fizeram a nobreza arruinada pedir esmolas ao Papa. Ou no relato de como a Peste Negra dizimou um terço da população da Europa. A julgar por alguns parágrafos, o autor considera que este foi um preço razoável a pagar pela diminuição da desigualdade, pela elevação dos salários da mão-de-obra (que se tornou escassa) e pelo barateamento do preço das terras: antes da peste, relata Scheidel, 5% da população da Europa detinham metade da riqueza do continente; depois da peste, esse número passou para 35%.

Apesar da roupagem sofisticada e erudita, “Violência e a História da desigualdade” é um livro que apela ao ressentimento e à fantasia igualitária de certos leitores

O mesmo raciocínio torto se aplica à Grande Depressão, às duas guerras mundiais e, naturalmente, à Revolução Soviética. Já deve ter dado para perceber que, apesar da roupagem sofisticada e erudita, “Violência e a História da desigualdade” é um livro que apela ao ressentimento e à fantasia igualitária dos leitores.

O fato é que a mesma história poderia ser contada pelo viés oposto, isto é, afirmando-se que a desigualdade diminuiu e que civilização conheceu surtos de desenvolvimento e progresso nos períodos de paz e liberdade, não nos períodos de tragédias “niveladoras”.

Ainda que o livro contenha alguns insights interessantes, fica a impressão de que a conclusão veio antes da pesquisa. Aliás, esta é uma prática muito comum na literatura acadêmica recente, especialmente na área de Ciências Humanas: a conclusão não decorre da pesquisa, a conclusão é a premissa: toda a pesquisa é orientada a dar uma aparência de sentido, consistência e coerência a uma convicção pessoal. E esta parece ser movida pela revolta diante do fato incontestável de que sempre existirá algum grau de desigualdade entre os homens, ao menos em qualquer sociedade próspera e livre.

O próprio autor parece reconhecer (e lamentar) isso quando escreve que a herança da pandemia de Covid-19 não será um mundo mais justo socialmente: “Ao contrário, a massa de desempregados vai levar tempo até voltar a trabalhar e, para os ricos, a pandemia não será tão disruptiva”. Ele conclui dizendo uma platitude: “As possíveis mudanças sociais [decorrentes da pandemia] vão depender da resposta dos governos para proteger os mais vulneráveis à crise”. A resposta que ele próprio propõe é taxar os ricos – sem maiores considerações a respeito do impacto de um aumento da carga tributária no índice de desemprego, por exemplo.

Scheidel também lamenta que a desigualdade tenha aumentado na China e no antigo bloco soviético nas últimas décadas, sem atentar para o fato de que, se a desigualdade aumentou nesses países, a qualidade de vida e o nível de renda dos mais pobres também aumentaram.

É mais um autor “do bem”, para quem uma sociedade altamente desigual, na qual os pobres vivam dignamente, é mais detestável e revoltante que uma sociedade na qual os pobres catam comida no lixo, mas que apresente um menor grau de desigualdade. No limite, essa premissa leva apenas a políticas públicas e a intervenções do governo que nivelam por baixo a renda e o bem-estar da sociedade, por criarem barreiras ao empreendedorismo e à inovação.

Por exemplo, Cuba e Venezuela são, seguramente, sociedades menos desiguais que o Brasil, o que não muda o fato de, nos dois países, faltarem até artigos de primeira necessidade nas gôndolas dos supermercados. “Ain, mas a desigualdade é menor...”, argumentará a “galera do bem” para ostentar virtude – para, em seguida, encomendar pela Internet seu Iphone 13, com a consciência limpinha. Ou seja, Scheidel é um desses autores – como Thomas Piketty, autor do superestimado “O capital no século 21”, que também é simpático a soluções de choque para a redução da desigualdade no mundo – que escrevem partindo da premissa de que o igualitarismo é um bem em si, ignorando, de boa ou má fé, leis rudimentares do funcionamento da economia. Para eles, é preferível a igualdade na pobreza a qualquer disparidade de renda – mesmo que seja essa disparidade que permita que a renda dos mais pobres aumente e se torne mais digna.

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