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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Tempos muito estranhos

Já se sentiu virtuoso hoje?

(Foto: Luciano Trigo com ChatGPT)

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A busca pela virtude costumava ser uma jornada árdua, repleta de desafios, sacrifícios e reflexão constante. Uma jornada que levava a vida inteira. Mas isso é coisa do passado. Felizmente, existem hoje diversos atalhos para alcançar aquela agradável sensação de superioridade moral que, antigamente, até os monges teriam vergonha de ostentar.

Se você ainda não se sentiu virtuoso hoje, é bom se apressar, porque tem likes em jogo e muita gente já largou na sua frente, disputando o pódio na corrida da lacração. Não há tempo a perder. Tanto quanto escovar os dentes, ligar o celular logo cedo e imediatamente se indignar com alguma coisa deve fazer parte do seu ritual matinal. O café pode esperar, a virtude não.

Você tem que se mostrar ofendido antes das nove da manhã, ou corre o risco de parecer omisso, ou indiferente às mazelas alheias – o que é quase tão grave quanto ser culpado por elas. Lembre-se: se você não está lutando contra a opressão, você está do lado do opressor.

Mas ainda dá tempo. Escolha um tema da moda, publique um post inflamado, denuncie alguém, faça a diferença. A boa notícia é que você não precisa salvar um gato de uma árvore, doar sangue, cumprimentar o porteiro nem telefonar para sua avó. Não precisa fazer nenhum esforço real, basta se exibir. Mas a sua virtude precisa ser provada publicamente, todos os dias. É indispensável mostrar o tempo inteiro que você luta corajosamente contra a desigualdade.

Como? Você acha que o legal é ser discreto e fazer o bem no anonimato? Inocente. Nada é real até virar conteúdo. A virtude precisa de cliques, ou evapora. Se ninguém vê, ninguém curte, e você está fora do jogo. Não terá prestígio nem engajamento. Tudo é vitrine. Tudo só existe para ser visto. O mundo virou um desfile de bondade ensaiada, e você precisa conhecer as regras para se destacar. Quanto mais virtuoso você se mostrar, mais aprovado será. A validação é a moeda do ego, e seu ego pode ser milionário.

A autopromoção deve ser permanente. No mercado da virtude, você é um produto que venderá muito mais se vier embalado em frases de efeito e hashtags progressistas. A mensagem básica a ser repetida é: “Vejam como eu sou sensível, consciente, engajado, lindo e, ainda por cima, do bem”.

Postar é tudo. Ajudou alguém? Posta. Chorou? Posta. Levou uma bronca da mãe ou do chefe? Posta. Quando não estiver posando de justiceiro social, lambuze-se na vitimização gourmet. Porque sofrer virou um capital social. Quanto mais você se declarar violentado pelo mundo – por olhares, por palavras, por estruturas – mais pontos você acumulará no ranking da virtude. Não é só isso: com o tempo, você sentirá um prazer quase pornográfico em se mostrar ofendido para o mundo.

Mas saiba que a concorrência é grande, porque vítima profissional é o que não falta por aí. Gente que se apresenta como vítima do capitalismo, da estética, da opressão sofrida por ancestrais, do machismo estrutural, do fascismo, da gordofobia, das mudanças climáticas, do Mercúrio retrógrado no mapa astral. Parece estar em curso uma estranha competição, ainda que não declarada: quem sofre mais, quem foi mais injustiçado, quem merece mais aplausos por resistir heroicamente ao simples fato de existir.

Se estiver faltando treta ou gente para cancelar, poste um textão sobre a importância da empatia, com uma foto de mãos dadas em preto e branco. Ou, como juiz e guardião da bondade universal, compartilhe listas de coisas que pessoas “realmente boas” fazem todos os dias.

Mas não se preocupe, logo vai aparecer um vídeo com uma moça se debulhando em lágrimas e contando como foi vítima de uma discussão no trabalho ou de um relacionamento abusivo, em busca de afago coletivo. Nesses momentos é legal sacar do bolso frases memorizadas, como "Juntos, podemos mudar o mundo". Não se preocupe em propor soluções concretas: o tom emotivo é que importa.

A concorrência é grande, porque vítima profissional é o que não falta por aí: do capitalismo, da estética, da opressão sofrida por ancestrais, do machismo estrutural, do fascismo, da gordofobia, das mudanças climáticas, do Mercúrio retrógrado no mapa astral

Então, você está fazendo tudo certo? Já defendeu a pauta da semana? Já cancelou alguém com elegância? Já lacrou o suficiente para dormir em paz, mesmo sabendo que o mundo continua exatamente o mesmo?

Para facilitar a sua vida, leitor, elaborei a minha própria lista de hábitos das pessoas virtuosas. Imprima e prenda na porta da geladeira. Se você seguir todas as dicas, seguramente logo parecerá uma pessoa maravilhosa e moralmente superior, sem sair de casa e sem o incômodo de realmente contribuir com algo significativo.

Poste uma indignação por dia

Um post indignado vale mais que mil ações concretas. Compartilhe notícias trágicas e adicione um comentário breve e inflamado: "Que absurdo!"; "Até quando?"; "Meu Deus!". Isso demonstra sua empatia e consciência social. Emojis de coração partido também são bons. O importante não é agir, é deixar registrado que você se importa.

Escolha a sua dor favorita

Adote uma bandeira com potencial de gerar empatia imediata. De preferência algo que envolva sofrimento alheio, de grupos distantes de você, para não precisar fazer nada concreto. Siga perfis de ONGs e ativistas, isso cria uma fachada de engajamento cívico. Assine petições online sem entender direito do que se trata, especialmente se for para cancelar alguém. É praticamente um voluntariado.

Exercite o ódio do bem

Escolha o alvo da semana. De preferência alguém que já está sendo cancelado. Pode ser um famoso que postou uma bobagem em janeiro de 2008. Exponha publicamente o sujeito e promova um linchamento virtual que vai acabar com a vida dele. Nada eleva mais o nosso senso de virtude quanto apontar o dedo para um erro alheio. Não é sobre ódio, é sobre responsabilidade.

Compartilhe frases de impacto

Não precisa nem saber direito quem é. Basta pegar uma frase da Clarice Lispector ou do Dalai Lama e postar em uma imagem com fundo pastel. Mesmo que a frase seja falsa. Uma variação dessa dica para determinadas mulheres é: poste fotos na praia ou na balada, acrescentando um versículo bíblico na legenda. Você vai parecer altamente espiritualizada, mesmo que a intenção seja só mostrar como sua vida é maravilhosa (e aproveitar para exibir o corpinho).  

Elogie a si mesmo por se aprimorar

Leia metade de um artigo ou assista a 10 minutos de um documentário. Em seguida divulgue que você está expandindo seus horizontes. Isso fará você parecer humilde e culto ao mesmo tempo. Aproveite para incorporar às suas conversas termos como "sustentabilidade", "inclusão", "diversidade" e "empoderamento". O som dessas palavras é inerentemente virtuoso.

Compare-se aos piores

Quando questionado sobre sua moralidade, aponte para alguém pior. "Pelo menos eu não sou como fulano!" é uma frase mágica, que absolve qualquer falha. Afinal, virtude é algo relativo, e escolhendo a referência certa, você está sempre acima da média.

Reclame muito do sistema capitalista

Critique o "consumismo desenfreado" enquanto faz compras online. Declare seu desprezo pela cultura materialista enquanto acrescenta itens ao seu carrinho. Aproveite para postar cupons de desconto de seus parceiros comerciais, de preferência de empresas socialmente conscientes e ecologicamente corretas – algo na linha “hambúrguer vegano”.

Seja ecologicamente correto

Poste uma foto na academia usando uma camiseta de algodão orgânico como prova de que você está salvando o planeta – mesmo que a camiseta tenha sido produzida por trabalho escravo em um processo altamente poluente. Aliás, o algodão nem precisa ser realmente orgânico, o importante é o ato simbólico de preocupação ambiental. Reclame da destruição do planeta enquanto bebe café em copo descartável. A virtude não precisa ser coerente: só precisa ser bonitinha.

Use a estética da resistência

Vista camisetas com frases lacradoras como “Lute como uma garota”, “Empatia é revolucionária” ou “Não é sobre mim” (mesmo que no fundo seja). Poste selfies com expressão sofrida e legendas de superação. Sofrimento vende e rende likes. Indignação retroativa também funciona: aproveite qualquer data comemorativa para lembrar a todos que você sempre esteve do lado certo da História, mesmo que só tenha ouvido falar na data no mês passado. Não se preocupe, ninguém vai checar mesmo.

Seja um coach da sensibilidade

Explique para os outros como eles devem sentir, reagir, pensar e postar. Mas rejeite toda crítica endereçada a você, como "violência emocional". Afinal de contas, você é apenas uma alma iluminada tentando ajudar o mundo a evoluir.

Poste sua bondade em tempo real

Fez alguma doação, mesmo de R$ 10? Anuncie. O importante não é o valor, é a atitude. Use a frase "fazendo a minha parte", com hashtag de coraçãozinho, para maximizar o impacto. Ajude alguém uma única vez e transforme isso em uma história inspiradora, que você contará para o resto da vida. O universo registrará seu ato de generosidade.

Nunca admita erros ou contradições

Toda opinião contrária à sua é uma agressão. Toda divergência é uma violência. Finja que você nunca erra, mas se o erro ficar muito evidente, é melhor se transformar em vítima rapidinho: “Fui cancelado porque disse o que penso”; “Sofri preconceito por ser quem sou” etc. Diga também que está em processo de desconstrução e, se continuarem te pressionando, grite que está sendo atacado. Se nada disso funcionar, diga que está cuidando da sua saúde mental, isso deve silenciar os críticos.

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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