• Carregando...
Livro analisa “ódio criativo” de H.P.Lovecraft, mestre do horror
| Foto:

Um artista pode ter falhas de caráter ou agir de forma execrável e, ainda assim, produzir uma obra genial, capaz de encantar e influenciar geração após geração? Este é um debate antigo, ao qual já foram dedicadas bibliotecas inteiras. O caso paradigmático é o de Ezra Pound, escritor americano que revolucionou a poesia moderna, mas... fez a péssima escolha de apoiar o regime fascista italiano. Por mais que se tenha atacado Pound, contudo, o fato é que mesmo seus mais severos detratores jamais ousaram questionar sua genialidade como poeta, muito menos propor que sua obra fosse “cancelada”. Seu livro “Cantos”, por exemplo, sempre foi presença obrigatória em qualquer cânone sério da literatura ocidental.

Aliás, por sua defesa do Fascismo (o de verdade, não o de mentirinha que hoje se atribui a qualquer adversário político), Pound foi preso e até exibido em uma jaula, na Itália, em 1945, no final da Segunda Guerra. Mas, vejam só: ele acabou sendo libertado e repatriado graças à mobilização de dezenas de intelectuais da época, que lamentavam sua escolha política mas nem por isso deixavam de reconhecer sua importância como artista. Hoje o desenlace certamente seria outro: Pound seria linchado por seus colegas, e sua obra ferozmente atacada nas redes sociais por blogueiros e influenciadores digitais que nunca leram um livro.

É o que vem acontecendo nos últimos anos com H.P.Lovecraft (1890-1937), mestre da literatura de horror. Desde 2015, o World Fantasy Awards, uma espécie de Oscar do gênero, aboliu a estatueta do escritor que era entregue aos premiados desde a criação do evento, em 1975. E é fácil encontrar no Youtube vídeos pedindo o “cancelamento” de Lovecraft. O motivo: Lovecraft era inquestionavelmente racista e xenófobo, mesmo para os padrões da época em que viveu. O tema volta à tona com a publicação no Brasil do livro “H.P.Lovecraft – Contra o mundo, contra a vida”, do francês Michel Houellebecq, aliás outro escritor bastante controverso.

Com obras marcadas por um realismo cínico e pela contestação do dogma politicamente correto que hoje prevalece, Houellebecq é talvez o mais importante escritor francês em atividade – recomendo vivamente a leitura de seu recente romance “Submissão”, sobre o processo de islamização da França. Seu ensaio sobre Lovecraft foi publicado originalmente em 1991, quando ele ainda era praticamente desconhecido, mas já revelava seu potencial para a polêmica.

Não é exatamente um ensaio biográfico, nem mesmo um texto de análise literária. Está mais para um mergulho afetivo de Houellebecq no universo sombrio e bizarro de um dos autores mais estranhos da literatura do século 20. Como afirma na introdução Stephen King, que foi fortemente influenciado por Lovecraft, trata-se de uma leitura indispensável para aqueles que, nas noites de insônia, “costumam ouvir vozes sussurrando dentro do travesseiro” (graças a Deus, isso nunca aconteceu comigo).  A edição brasileira inclui ainda dois contos clássicos de Lovecraft, “O chamado de Cthulhu”, publicado na revista “Werird Tales” em 1928, e “O sussurro nas trevas”.

Houellebecq apresenta de forma inventiva a estética do horror cósmico, subgênero fundado por Lovecraft, mas o livro chamou mesmo a atenção pelos breves capítulos em que examina os preconceitos do escritor

"Contra a vida, contra o mundo" funciona como um guia de navegação pelas obras canônicas de Lovecraft, aquelas que formam o ciclo do mito de Cthulhu, entidade monstruosa que lembra um polvo. Houellebecq apresenta de forma inventiva a estética do horror cósmico, subgênero fundado por Lovecraft escritor, mas o livro chamou mesmo a atenção pelos breves capítulos em que examina os – fartamente documentados, diga-se de passagem – preconceitos do escritor americano: contra negros, asiáticos, ítalo-portugueses, judeus etc.

Lovecraft basicamente odiava todo mundo, e Houellebecq sugere que este ódio era um reflexo de sua inadequação a uma sociedade com costumes e valores em transformação: “Um ódio absoluto pelo mundo no geral, agravado pelo desgosto particular pelo mundo moderno. Eis o que resume bem a atitude de Lovecraft”, escreve Houellebecq. (...) “[Nele], o ódio pela vida precede toda literatura”.

Houellebecq lembra que Sonia Greene, que foi casada com o escritor, afirmou, referindo-se ao período em que o casal morou em Nova York: “Sempre que andávamos em meio à multidão e nos deparávamos com pessoas das mais diferentes etnias, uma característica comum de Nova York, ele ficava lívido de raiva e quase perdia a cabeça”. Em sua vasta correspondência, Lovecraft manifestou simpatia por Hitler, pregou a superioridade da “raça ariana” e se referiu à população do Lower East Side de Nova York como “mongoloides ítalo-semíticos” Também na sua ficção é fácil identificar sinais mais ou menos velados de preconceito e xenofobia, caso do conto “O horror em Red Hook”.

Não era, portanto, um preconceito voltado contra uma etnia específica, mas um ódio generalizado “contra tudo e contra todos”. Segundo Houellebecq, aliás, o escritor também tinha aversão a sexo e dinheiro, dois temas ausentes de sua ficção. “É em Nova York que suas opiniões racistas se transformam em uma autêntica neurose racial”, escreve. E vai além, afirmando de forma categórica que a fase mais criativa de Lovecraft correspondeu justamente ao período em que ele se tornou mais racialmente paranoico, em uma espécie de “ódio criativo”: “É o ódio que provoca em Lovecraft esse estado de transe poético em que ele excede a si mesmo na pulsação rítmica e louca das frases malditas; é o ódio que ilumina seus grandes textos com um brilho hediondo e cataclísmico”.

Em vários aspectos, Lovecraft foi fracassado e infeliz, o que também se reflete no pessimismo de sua obra, com recorrentes referências à loucura e ao suicídio. Depois de dilapidar uma pequena herança e do breve casamento com Sonia (aliás judia e bem mais velha que ele), Lovecraft voltou para Providence, sua cidade natal, e viveu seus últimos anos em modesto isolamento. Ele não gostava de trabalhar – e sequer se considerava um escritor profissional: era com desgosto que ganhava alguns trocados como revisor de textos e jornalista amador, para garantir a subsistência. Admirado por seus pares, contudo, ganhou ainda em vida uma reputação crescente nas revistas de pulp fiction em que publicava suas estranhas histórias.

Resumindo, Lovecraft era certamente um ser humano com preconceitos abjetos e psicologicamente perturbado, mas foi também um escritor notável, um criador de universos cuja obra reverbera até hoje – não somente na literatura e no cinema, mas também na indústria de games, dos quadrinhos e até da música (foi homenageado em várias canções da banda Metallica, por exemplo). Pelo menos para Houellebecq, uma coisa não anula a outra.

H.P. Lovecraft - Contra o mundo, contra a vida, de Michel Houellebecq. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Editora Nova Fronteira, 200 pgs. R$ 44,90

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]