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O poeta aos 80: uma entrevista de Armando Freitas Filho
| Foto: Divulgação

Recém-lançado pela Companhia das Letras, “Arremate” dá continuidade a uma obra poética que se mostra consistente e orgânica desde a publicação do primeiro livro de poemas de Armando Freitas Filho, “Palavra”, em 1963. Nesses quase 60 anos de poesia impressa, o autor se manteve fiel a um estilo marcado, na forma, pela minúcia e pelo rigor no trato das palavras e, no conteúdo, pela revisitação constante dos mesmos temas e obsessões, merecendo destaque nessa longa obra os volumes “À mão livre” (1979), “3x4” (1985), “Cabeça de homem” (1991) e “Raro mar” (2006).

Contrastando com a pequena dimensão de seus livros mais recentes, como “Rol” e “Lar”, “Arremate” é um volume robusto, dividido em seções que poderiam ser lançadas como obras autônomas. Ainda que uma edição mais rigorosa pudesse deixar alguns poemas de fora, o nível de qualidade dos poemas é alto e constante: a poesia de Armando pede sempre releituras, por suas nuances nem sempre óbvias à primeira vista, e convida à reflexão (exemplo: “A morte de um amigo/ impressiona mais/ do que a morte dos pais/ feitos para morrer”)

Particularmente poderosos são os poemas sobre a memória familiar, que examinam de forma corajosa a relação do poeta com sua mãe e com seu filho – nos dois casos, há algo de acerto de contas, mas também de redenção e convite a uma reconciliação talvez impossível. Igualmente corajosa é a maneira como Armando expõe a decadência física provocada pela velhice, como no afiado “Vida, privada”.

Já nos muito poemas dedicados a artistas plásticos nacionais e estrangeiros, percebe-se a influência do João Cabral de Melo Neto de “Terceira Feira”: são como que registros, em linguagem econômica, de impressões instantâneas, de insights produzidos por um quadro na sensibilidade do autor.

Por tudo que foi dito acima, a última seção, reunindo poemas de ocasião explicitamente políticos, inspirados no noticiário dos últimos anos, parece um apêndice desnecessário, que, por assim dizer, “desarremata” um livro que até ali se mostrava coeso e sem muitas arestas. Que venham outros livros, acertos e erros, nesse contínuo processo de melhorar rascunhos e enredos que define toda trajetória poética (e, talvez, toda vida): “...ir durando contra o tempo – e confirmar que há o que fazer”.

_ O que “Arremate” arremata?

ARMANDO FREITAS FILHO: Meu primeiro sentimento foi o de arrematar o meu primeiro livro Palavra, escrito em 1960 /1962 e publicado em 1963. Mas depois fui consultar os dicionários e, segundo Houaiss e Aurélio, “arremate” é também um chute no futebol.

_ “Estava certa de que viveria/ melhor se fosse por escrito”, diz um dos poemas, sobre Ana Cristina Cesar. Você acha que a vida é melhor por escrito? Se fosse possível reescrever a vida vivida, o que você reescreveria?

ARMANDO: A rigor, não... Mas, de raspão, posso pensar que escrever é uma espécie de um jogo de palavras cruzadas lírico, digamos assim. Se fosse possível o impossível, reescreveria para ver se melhorava. Afinal, vivo melhorando o que me parece ser um rascunho. Tudo para mim é rascunho eterno. Posso sempre aprimorar um pouco, mas tem uma hora que a coisa cessa, já que toda folha acaba.

_ São inúmeros os poemas sobre artistas plásticos no livro. Como se deu essa aproximação com as artes plásticas?

ARMANDO: Rubens Gerchman e eu fomos amigos muito moços. Sentávamos nas carteiras duplas do Colégio Andrews. Aprendi muito com ele sobre artes plásticas e com outros pintores, tal como Roberto Magalhães. Isso só ampliou uma tendência minha de visitar exposições e amar Van Gogh.

_ Esses poemas, aliás, lembram outros, de João Cabral de Melo Neto, em “Terceira-Feira”. Você reconhece essa influência/diálogo? Que lembranças pessoais você tem de João Cabral, aliás? E de Drummond, quais são suas lembranças? E de Ferreira Gullar, com quem também conviveu?

ARMANDO: Reconheço a influência dos meus mosqueteiros queridíssimos; Bandeira, Drummond, João Cabral e Gullar. Copiei à mão A Luta Corporal que um amigo me emprestou apenas por dois dias, para entender melhor aquele texto. Algo parecido com a criação do conto de Borges que fez Menard escrever Quixote tal e qual. Tive sorte de conhecê-los de perto, posso dizer – amigos. Todos eles salvadores de mim. Posso até citar um outro que descrevo numa frase: não fiz faculdade, mas fiz Antonio Candido com o qual troquei cartas, desde que o conheci.

_ Nas gerações que vieram depois da sua, você enxerga poetas do mesmo porte de Cabral, Drummond e Gullar? Ou a era da grande poesia brasileira já passou? A que se pode atribuir isso?

ARMANDO: Sem esquecer Bandeira, posso lhe dizer, simplesmente: são insuperáveis. Não sei citar ninguém próximo, sequer. Não sei a que atribuir isso. Para mim eles não passaram, estão vivos e notáveis.

_ No poema dedicado a João Gilberto Noll, você escreve que “a morte de um amigo/ impressiona mais/ do que a morte dos pais/ feitos para morrer”. Quais foram as mortes que mais te marcaram, pessoalmente, e que impacto essas perdas tiveram na sua poesia?

ARMANDO: De Bandeira, Drummond e Ana Cristina Cesar. Mas me consolo.  Pessoas assim não morrem, como já disse. Estou sempre os consultando. O impacto é perene. Volta e meia noto que penso neles, repetidas vezes, no que escrevo; no que ouço: sussurros dia e noite adentro de suas vozes escritas de cor.

_ Em “Perfil”, um dos poemas autobiográficos, você sugere que ficou gago porque te forçaram a desenhar com a mão direita, sendo canhoto (ou ambidestro). Que relação você estabelece entra a gagueira da sua juventude e a sua escrita poética?

ARMANDO: A gagueira não foi apenas na juventude; foi durante toda a vida. É agora como sempre. Até mesmo com mais força. Não sei responder se a gagueira da vida inteira teve influência no que escrevo. Vou prestar atenção. Quem sabe não consigo versos até com certa relutância nas linhas do caderno, nas páginas do meu livro, trêmulas com um ir e vir inquietante? Sem muitas “retas sérias” costumeiras? Até com uma certa comicidade, bem ausente na minha escrita, à la Carlitos, que adoro e tenho inveja?

_ Os poemas sobre a paternidade e sua relação com seu filho estão entre os mais fortes do livro. O poema sobre sua mãe também. A poesia pode ser uma forma de terapia, isto é, de elaboração de questões afetivas e familiares profundas?

ARMANDO: Meus dedos estão em cima do teclado do computador. Depois de pensar um pouco não sei responder, satisfatoriamente, o que você me pergunta. Chego a pensar que a poesia funciona na “elaboração de questões afetivas”, mas não só o poema produz, a vida em geral sim, com poema ou sem poema. Portanto, concluo que é um vale-tudo, operando de qualquer maneira, sem lápis na mão, a priori.

_ Os poemas sobre política da última parte me pareceram um apêndice estranho ao livro. Em mais de quase 60 anos de poesia publicada, vocês manteve distante da militância, ou seja, esses poemas parecem inverter o percurso normal que costuma ir do engajamento ingênuo da juventude ao ceticismo desconfiado da maturidade – percurso de Gullar, por exemplo, que foi do comunismo à crítica radical aos governos do PT. Fale sobre isso.

ARMANDO: De fato, é um apêndice inesperado, como comecei a ver e a sentir, mas para mim, necessário, como quem aponta surpresas negativas, para dizer o mínimo. Aliás, no meu livro À mão livre, de 1979, de inopino, dois poemas ganharam interesse e comentário. Um deles “A flor da pele” chegou a ser tema da dissertação espetacular feita por Mariana Quadros e o outro, “Corpo de delito”, foi muito falado nas resenhas, palestras e faculdades. Foi uma dificuldade a Nova Fronteira ter aceitado integralmente o livro. Discordo, portanto, que sempre fui um “distante da militância”. Muito pelo contrário, pois no golpe militar de 1964 estava presente com um grupo de amigos. Todos nós tínhamos 23, 24 anos e participamos de protestos variados. No fim do golpe, os poemas citados acima foram provas disso: arrematadoras. No quinquagésimo aniversário do golpe militar tanto a Unicamp quanto a UFRJ imprimiram poemas meus e de outras pessoas em estandartes que foram espalhados pelos campi. Além destes há poemas engajados também em Dual, de 1966, e Marca registrada de 1970. Neste, tive que cortar alguns porque me avisaram que eu podia ser preso. Agora, em 2020, com 80 anos estou preso, confinado na seção “Em papel jornal” de Arremate.

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