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O que o “barraco do Leblon” revela sobre a nossa sociedade?
| Foto: Reprodução Twitter

Às 20h da última sexta-feira, uma movimentada rua do Leblon, bairro nobre da Zona Sul do Rio de Janeiro, foi palco do seguinte episódio: de pé em um carro conversível dirigido por um engenheiro, duas mulheres de biquini fio dental dançavam funk e, segundo relatos, se acariciavam e beijavam como se não houvesse amanhã. Por causa do trânsito, o carro ficou parado alguns minutos em frente a um restaurante, onde casais e famílias faziam suas refeições. Clientes do restaurante começaram a filmar a cena (óbvio), e os vídeos viralizaram nas redes sociais.

Uma arquiteta, alegadamente em uma mesa com crianças e pessoas idosas, não se conteve diante do que descreveria mais tarde como “filme pornô ao ar livre” e atirou uma garrafa de plástico de água mineral na direção do carro, atingindo as costas de uma das moças, uma influenciadora digital. (Em um vídeo depois apagado, a arquiteta afirmou ter ficado incomodada com as cenas de “atentado ao pudor” e que jogou água para “apagar o fogo” do trio que estava no conversível.)

Pois bem. A moça desceu do carro, foi até a varanda do restaurante, acertou dois socos na arquiteta e voltou ao veículo. Uma menininha na mesa começou a chorar. O namorado da arquiteta foi atrás da influenciadora e arrancou a parte de cima do seu biquíni, antes que o carro arrancasse. Segundo reportagens, neste momento a influenciadora digital balançou os seios, enquanto os clientes do restaurante gritavam “piranha”, entre outros xingamentos.

A revista “Veja” entrevistou a arquiteta e compilou algumas imagens do episódio, no link a seguir:

https://vejario.abril.com.br/wp-content/uploads/2020/09/VIDEO-2020-09-26-15-55-40.mp4?_=4

O assunto poderia ter terminado aí, mas vivemos em uma época na qual episódios banais viralizam, polarizam e ganham uma dimensão absurda – a ponto de eu mesmo, que preferia nem ter tomado conhecimento do caso, estar escrevendo sobre ele. O episódio ficou conhecido como “o barraco do Leblon”, foi parar na Justiça e já motivou dezenas de matérias (o jornalismo investigativo funciona muito bem nessa área: já descobriram até que todos os personagens envolvidos têm passagens pela polícia). Como era de se esperar, as redes sociais se dividiram, e celebridades resolveram dar seus pitacos: entre outros famosos, até a Xuxa se manifestou sobre a polêmica (sim, a Xuxa).

Atenção! É óbvio que atirar garrafas de plástico em alguém – da mesma forma que revidar com socos – é injustificável. Sobre este ponto (espero), ainda existe consenso. Mas, por irrelevante que pareça, o barraco do Leblon é revelador de alguns aspectos básicos da nossa sociedade sobre os quais não existe mais consenso, que serão examinados a seguir. Antes, porém, transcrevo algumas declarações dos personagens envolvidos, extraídas de reportagens, para quem não acompanhou o caso:

A arquiteta:

“Nós vivemos em uma sociedade e temos que ter respeito pelo outro. (...) O problema não é elas estarem de biquíni. Isso é normal, óbvio que poderiam estar. Eu moro perto da praia, passo o dia de biquíni. O problema é que elas estavam se beijando, desciam e botavam a boca no peito uma da outra, passavam a mão dentro do biquíni, beijavam o motorista, todo mundo junto. Uma baixaria. (...) Os três estavam fazendo preliminares, parecendo um filme pornô bem ali na nossa frente, de camarote”.

O engenheiro/motorista:

“No mundo atual, ver duas mulheres se beijando ou um beijo triplo é a coisa mais normal do mundo. (...) Vim beijando uma, depois outra, depois elas se beijavam. Coisa mais que normal para a sociedade de hoje em dia. Faço isso toda semana. (...) Ela [a arquiteta] é uma recalcada, ficou com ciúmes de duas mulheres lindas se divertindo”.

A influenciadora digital:

“Estávamos felizes, havíamos nos divertido o dia todo. E, como estava bastante calor, decidimos ir de biquíni mesmo, cantando e dançando funk. (...) Apanhei, revidei. Tô certa? Eu acho que eu tô. Tenho certeza de que não mereço apanhar à toa. (...) Enfim, bati, bati, sim, ela não se esquivou, bati com força e foi um tapa bem dado. Na verdade, fomos humilhadas, tanto pela agressão como por quem gravou, porque o objetivo era nos ridicularizar.”

O que o episódio revela?

Vivemos em uma sociedade na qual não existe mais uma moral compartilhada, aquele conjunto de valores e costumes socialmente aceitos que determinam o que é adequado, e sem os quais a vida em comunidade pode ficar difícil. Em um ambiente dominado pelo relativismo moral, todos os envolvidos no caso se julgam certíssimos, e não há, na percepção do que aconteceu, interseção que permita diálogo ou consenso. Para uns é muito natural dançar funk de fio dental no meio da rua na frente de um restaurante, para outros isso constitui um inaceitável atentado ao pudor.

Cada grupo, cada indivíduo, segue suas próprias regras, e os outros que se danem. Como não existem mais noções comuns de certo e errado, todos têm razão e ninguém tem razão. A norma que vigora é “Se eu posso, eu vou fazer, e que se danem os outros”. Em uma comparação besta, é o mesmo raciocínio que leva vizinhos a arrastar móveis de madrugada ou a escutar música nas alturas, indiferentes ao sossego alheio.

Em decorrência dessa fragmentação moral da sociedade, perderam-se também as noções de bom senso e de senso comum. O discernimento que poderia fazer as moças do conversível pensar: “Nós temos o direito de dançar funk e dar beijo triplo em frente a um restaurante com crianças e idosos, mas isso nos convém? É adequado?” Por outro lado, poderia ter levado a arquiteta a refletir: “Tenho o direito de protestar e reagir, mas vale a pena? Daqui a pouco o sinal abre e eles desaparecem”.

Faltou aos dois lados a pergunta: “Qual a necessidade disso?” E faltou porque não existe mais disposição para o diálogo, nem a percepção de que o meu direito termina onde começa o do outro. Nunca se pregou tanto a tolerância à diferença, mas na real nunca se odiaram tanto as opiniões diferentes: é cada um por si e todos contra todos Cada grupo se fecha em sua trincheira, e em conflitos como o barraco do Leblon – que tendem a se multiplicar – vence quem grita mais alto, quem fala mais grosso, ou quem recebe mais apoio da mídia ou likes nas redes sociais.

No mar do relativismo em que vivemos, mesmo este artigo representa apenas uma opinião a mais sobre o caso, equivalente a todas as outras opiniões e, portanto, tão inútil e irrelevante quanto qualquer outra opinião. E assim seguimos, cada um com sua verdade particular, indiferentes ao outro e orgulhosos de nossa superioridade moral. Até que essas verdades se chocam, resultando em garrafas atiradas e socos - ou em consequências mais graves.

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